terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Tirar Dilma e Lula do jogo: PSDB só pensa nisso

Ricardo Kotcho  

Para refletirmos durante o Carnaval: o que move o PSDB, qual é o seu projeto de país, além da obsessão em derrubar Dilma e tirar Lula do jogo?

A julgar pelas manifestações dos seus representantes no Congresso Nacional e a guerra de extermínio desfechada nos últimos dias por seus robôs na internet, nada mais interessa.

Para alcançar estes objetivos, vale tudo, até se aliar a bolsonaros e caiados, e entregar o comando das oposições a um "aliado" do governo, o todo-poderoso presidente da Câmara, Eduardo Cunha. 

Ou alguém acredita que os tucanos estão realmente preocupados com os destinos da Petrobras, a vida da população e os rumos do país?

Outro dia perguntei no JRN ao deputado Carlos Sampaio, lider do PSDB na Câmara, quais eram os projetos do partido para 2015, além de pedir a criação de CPIs para investigar o governo. Sampaio deu uma resposta genérica e não consigo me lembrar de nenhum tema relevante.

Todas as iniciativas políticas, desde a reabertura dos trabalhos do Congresso há duas semanas, não partiram nem do governo nem da oposição, mas do suprapartidário Eduardo Cunha.

Por onde andam os caciques tucanos? Que fim levou Aécio Neves, o presidente do partido e candidato derrotado por pouco nas últimas eleições? Parece um vagalume, que vez ou outra acende em Brasília, solta uma nota ou faz um discurso, e some novamente. Alckmin, outro nome apontado como possível candidato em 2018, dedica-se atualmente apenas a achar água em São Paulo para evitar o racionamento. Serra só se movimenta nos bastidores. E FHC continua FHC.

O fato é que 2018 ainda está muito longe e o PSDB simplesmente não se conforma com a quarta derrota seguida para o PT. Desde o primeiro minuto após a reeleição de Dilma, o partido só pensa em encontrar atalhos para voltar ao poder, só pensa nisso.

Por isso, mesmo que não assumam esta bandeira abertamente agora, o impeachment tornou-se o caminho mais curto para a retomada do Palácio do Planalto, como fica claro nas convocações feitas pelas redes sociais para o protesto do "Fora Dilma" marcado para o dia 15 de março.    

O dilema tucano é que não bastará tirar Dilma. É preciso, antes, tirar Lula do jogo. É o que leva o PSDB a jogar todas as suas fichas no Judiciário e na mídia, a bordo da Operação Lava-Jato, como se tivessem descoberto um novo Plano Real.

A quem pensam que enganam? E o país que se dane.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

O projeto de poder de Eduardo Cunha

Roberto Amaral 

 
Invertamos a sentença notável de Clausewitz (Vom Kiege/Da Guerra), para afirmar que a política é a guerra por outros meios. Uma e outra estão subordinadas a uma estratégia (o que se procura conquistar) sustentada em ações táticas (o que fazer) necessariamente servidoras do objetivo final. No curso da peleja as táticas podem mudar e os aliados ser trocados.
 
Na guerra, as batalhas raramente cumprem o roteiro previamente traçado pelos estados-maiores. Já a política (mais precisamente aquilo que Gramsci chamava de a ‘pequena política’ e é disso de que se trata na cena brasileira) é a "arte" do possível, da maleabilidade, da resiliência e  do contorcionismo, conquanto que o grande objetivo – a conquista ou mantença do Poder, seja garantido.

Para esse efeito, os fins justificam os meios, e os meios variam segundo a elasticidade ética do sujeito. Na guerra e na má política. Eis o que as unifica. A guerra é, por definição, a barbárie, e a política raramente é a arte do bem comum. Há casos, mesmo, de absoluta ausência de limites; é quando a política fica a serviço do arrivismo e os interesses do Estado, o bem-público, o interesse coletivo sucumbem como figuras de uma retórica "para inglês ver".

Vargas, considerado por gregos e troianos como o mais hábil (e por isso mesmo o mais longevo) de nossos políticos-estadistas, desenvolveu como ninguém o ir e vir, o somar e o dividir. E, na vida, transitou da ditadura para a democracia. Atribui-se à sua verve a afirmação segundo a qual, na política, “não podemos ter amigos tão íntimos que com eles não possamos romper, nem inimigos com os quais não possamos nos reconciliar”. É a arte que admite a perda dos anéis como preço para a preservação dos dedos (no caso, representando o poder).

Seu arquiinimigo, Carlos Lacerda, levou a sentença ao paroxismo. Líder civil do golpe de 1964, mas incompatibilizado com os militares, vai procurar salvação na aliança com os destratados da véspera, Juscelino Kubitscheck e João Goulart, sem se sentir no dever de fazer a autocrítica das ofensas, das mentiras e das infâmias. De certa forma dizia para seu eleitorado e seguidores: esqueçam o que fui (mais tarde outro político diria “esqueçam o que escrevi”).Sua frustrada Frente Ampla tinha por objetivo reunir os diferentes que, por razões distintas (ideológicas, políticas, morais etc.), enfatize-se, lutavam contra o regime castrense.

É o exemplo de um bom fim absolvendo todos os meios, bons e maus. Lincoln, o estadista modelo, viveu a um só tempo a guerra e a política. Para obter da Câmara dos Representantes  a aprovação da medida que abolia a escravatura, mentiu para os congressistas e prorrogou a miséria da guerra civil. Mas seu objetivo era humanista e meritório. O que a história registrou foi o fim da escravidão e a vitória do Norte sobre os reacionários do Sul.

Essas reflexões deitam olhar sobre o novo Congresso empossado em 1.º de fevereiro, e, nele, particularmente, sobre a nova Câmara Federal e seu novo presidente que tão bem a representa, como a imagem de um espelho. A nova legislatura confirma a sentença de Ulisses Guimarães, que tanto conhecia o poder que liderou por muitos anos: “a próxima Câmara será [sempre] pior do que a anterior”. A agravada tendência conservadora da legislatura recém inaugurada era a única certeza de que dispunham os especialistas em antecipações do óbvio.

O domínio ético-político do chamado "baixo-clero" anunciava, com mais segurança que os informes meteorológicos, a vitória do líder Eduardo Cunha, bem calçado por anterior e bem calculado acordo com os jornalões, objetivado no compromisso de impedir a tramitação de qualquer iniciativa – governamental ou não que vise a regulamentar  a ação das empresas proprietárias de meios de comunicação sujeitos a concessões públicas, regulamentação, aliás, cobrada pela Constituição de 1988 (v. Artigos 220 e seguintes).

Relativamente à reforma política, as posições, do presidente Cunha, são as piores possíveis, derivando do livre financiamento empresarial das eleições, via contribuições  aos candidatos e partidos, ao "distritão" do saudoso Michel Temer (alguém sabe por onde anda ele em meio a tanta turbulência?), pelo qual desaparece a representação proporcional, desaparecem os partidos (que tal uma democracia representativa sem partidos?) e as minorias são condenadas ao silêncio.

A reação da grande imprensa é de entusiasmo diante de suas primeiras iniciativas Ah! como a história nos prega peças! – tidas como moralizantes daquela Casa pouco respeitada, que respeitada agora precisa ser, para o que der e vier.  E pode vir muita coisa. “Teremos sessões nas tardes das quintas-feiras”, exclama o grande jornal, como se nuniasse a salvação da República.

Representante do conservadorismo, vocalizando o atraso ideológico do fundamentalismo pentecostal mais primitivo, que manipula, Eduardo Cunha, no entanto, representa acima de tudo os interesses avançados do capitalismo financeiro, trafegando, lépido e fagueiro, à vontade, senhor de si, pelos meandros da Avenida Paulista. Para esse mister ele é confiável – politico urbano e fluminense – o que não ocorre com seu colega Renan Calheiros, nordestino vinculado à decadente economia açucareira, em síntese, um político provinciano;  e já não é promessa de poder o atual vice-presidente da República, com data certa para ser sacado da política. Já se lhe cobram a saída da presidência do PMDB, o que poderá conceder em proveito do projeto maior, que, sabe, não comandará.

O projeto de Cunha, se originalmente respondia tão só a uma ambição pessoal, então tida como desmedida, transforma-se em projeto prioritário das forças conservadoras que entreveem a possibilidade de retomar o controle da política e do que, com esse controle, se transforma em mera consequência. Cansado do ‘amadorismo’ do PSDB e quejandos, voltam-se também significativos  segmentos do Brasil moderno – a banca, os grandes meios de comunicação segmentos contrariados do mundo industrial, crescentes camadas da classe média urbana mobilizadas para o moralismo-- para o PMDB velho de guerra e sua comprovada capacidade de conviver com o Poder, que bem sabe controlar e usufruir como nenhum outro partido.

Cunha foi pinçado graças à sua inegável competência como articulador, sua dedicação aos objetivos a que se traça, sua convicção de que os fins justificam os meios. Ele é instrumento e sujeito de um projeto de poder do qual é o artesão mais ostensivo, mas não o único, até porque essa artesania compreende muitos segmentos, para além do estamento político e político-parlamentar. Nesse sentido, a presidência da Câmara Federal é o primeiro degrau dos muitos que ambiciona (a direita é seu corrimão), que pode costurar para si pessoalmente ou para outrem, não importa, conquanto que os interesses que representa sejam dominantes.

Neste sentido e para esses efeitos, Cunha já supera Michel Temer e, aliando-se a Renan Calheiros, nada mais nada menos que o presidente do Congresso Nacional, terá conformado a nova correlação de forças do PMDB, e, de resto, da República claudicante. Cunha não é mais, portanto, um quadro do ‘baixo clero’ em ascensão, mas o mais poderoso político brasileiro depois da Presidente da República (e com as mãos mais livres que as da Presidente). É a nova cara do ‘novo’ PMDB decidido a manobrar diretamente o Poder como senhor e sujeito, e não mais sob as asas do PT. Para tanto todos estão dispostos a vender a alma ao diabo.

Na guerra é desanimador para o  general comandante da batalha  a descoberta de que seus inimigos estão dos dois lados da linha de fogo. Mas, certamente, pior ainda  é descobrir que seus comandados perderam o ânimo do combate. O mesmo se aplica à política, e aos partidos quando suas militâncias arrefecem na luta. O general fica sem condições de defender sua cidadela e enfrentar o  inimigo; o político se vê de mãos atadas na defesa e seu governo. Na guerra e na política deixar-se acuar é reconhecer a derrota.

Os dados estão na mesa e a partida teve início. As pedras brancas, como sempre, são as primeiras a se movimentar e caminhando no rumo da área adversária prosseguirão, se não conhecerem resistência.
A conjuntura internacional desfavorável é uma peça no tabuleiro, como a crise econômica nacional tendente ao agravamento com a crise hídrica e, dela também consequente, a provável crise energética, mais ajuste fiscal, mais lava-jato, mais a media de sempre, mais o Congresso que temos, mais a base partidária de apoio do governo, sustentada pelo fisiologismo descarado. Os dados da economia alimentam a crise política que também a ceva, com a contribuição inestimável de uma oposição partidária disposta a apelar para a desestabilização e o golpismo,  e uma imprensa, sua aliada,  que, na sua parcialidade antigoverno, ultrapassa as raias da ética. O enredo é conhecido.

Qualquer que seja a política do Planalto, seu ponto de partida deve ser o fortalecimento do governo e da figura presidencial, o que depende das ruas, dos movimentos sociais, mas, igualmente, de uma ordem partidária que, a começar pelo atônito PT, precisa vencer a anomia e recuperar a capacidade de luta.

Mas este é, igualmente, o momento das grandes lideranças, das lideranças partidárias, das lideranças políticas, das lideranças sociais, das lideranças estudantis. E, acima de tudo, da afirmação da liderança da Presidente Dilma Rousseff.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

"Não confio na política dos EUA".

Luiz Manfredini *

Há um forte ranço de cautela e desconfiança no processo de reaproximação entre Cuba e EUA, cujo passo inicial – o restabelecimento das relações diplomáticas - foi anunciado no último dia 17 de dezembro pelos presidentes Raul Castro e Barack Obama.


 Obviamente não se deve subestimar tal iniciativa e tal processo, que rompem uma separação – bastante dolorosa para Cuba - de 54 anos. Espera-se que, muito em breve, a Ilha venha a contar com novas e melhores oportunidades para receber investimentos e ampliar seu comércio exterior, com ampla repercussão no desenvolvimento econômico do país e nas condições de vida do povo. Para a economia estadunidense, seduz a oportunidade de aproveitar um mercado tão próximo de 11 milhões de pessoas.

Ainda assim, a precaução dos cubanos e daqueles que lhes são solidários, possui fortes razões históricas. Afinal, os apetites norte-americanos sobre a Ilha – até mesmo para anexá-la ao seu território - remontam ao fim do século 18. Com a vitória da revolução, em 1959, as pressões foram excepcionalmente agravadas, a começar pelo perverso bloqueio comercial, econômico e financeiro imposto a partir de 1961, provocando prejuízos de bilhões de dólares ao país caribenho e sofrimentos enormes ao seu povo.

Além do bloqueio, a desconfiança vê-se também alimentada pelo vasto cardápio de hostilidades dos EUA em relação a Cuba nos últimos 55 anos, todas voltadas para desestabilizar e, por fim, derrubar o regime. Inclui-se aí o financiamento, pela CIA, de mercenários para a invasão da Baía dos Porcos, em 1961, as mais de 600 tentativas de assassinato de Fidel Castro, o envenenamento da agricultura e pecuária cubanas, emissões de rádio e TV e lançamento de panfletos convocando os cubanos a derrubar seu governo, o apoio financeiro e material para a oposição golpista, etc., etc., etc. Tudo isso é muito conhecido.

Não foi por menos que o taxista que me conduzia, alguns anos atrás, a um hotel no centro de Havana, em meio a uma conversa cujo teor já não me recordo, tenha afiançado, convicto: “Los americanos son siempre tramposos”. Também não foi gratuita e desprovida de sentido uma afirmação recente – em fins de janeiro último - do próprio Fidel, em carta enviada à Federação Estudantil Universitária (FEU). Embora sem discordar das iniciativas do governo no sentido da reaproximação, o líder da Revolução Cubana declarou: “Não confio na política dos EUA”.

Suavidade e porrete

Por mais de meio século obstinados em derrubar o socialismo cubano, por que os EUA procederiam agora de modo diferente? Vejamos a afirmação de Barak Obama, no tradicional discurso do Estado da União pronunciado no Congresso: "Estamos pondo fim a uma política que já passou há muito do prazo de validade. Quando aquilo que você está fazendo não funciona há 50 anos, é hora de tentar algo novo". Em outras palavras: o que os EUA patrocinaram até agora para derrotar, pela força, o regime cubano, não funcionou, então “é hora e tentar algo novo”. Para quê? Para continuar, com outros métodos, em busca dos mesmos objetivos.

Isso faz jus à política do “grande porrete (“big stick”), criada pelo presidente estadunidense Theodore Roosevelt para garantir aos EUA um papel de polícia no ocidente, especialmente seus interesses econômicos na América Latina. Ou seja: um forte poder para retaliar caso fosse necessário, com base no provérbio africano “fale com suavidade e tenha à mão um grande porrete”. No caso cubano, o porrete foi usado primeiro. Não funcionou, então agora a alternativa é falar com a suavidade das relações diplomáticas e a tentativa de destruir o socialismo cubano com a invasão do comércio, da cultura e da ideologia.

Em contrapartida aos duvidosos interesses dos EUA, os cubanos, escolados na luta cotidiana por sua soberania, se mantém, como sempre, firmes. Falando na Terceira Cúpula da Comunidade de Estados Latino-americanos e do Caribe (CELAC), que aconteceu dias atrás em San José, capital da Costa Rica, o presidente Raul Castro deixou claro que a “normalização só virá com o fim do bloqueio, com a devolução do território ilegalmente ocupado pela Base Naval de Guantânamo, e com o término das transmissões de rádio e televisão com provocações, transmissões estas que violam as normas internacionais”. A reaproximação também deverá implicar, segundo Raul, numa compensação “justa para o nosso povo pelos danos humanos e econômicos que sofreu” com o bloqueio.

Raul também apontou que “não se deve pretender, para que as relações com Estados Unidos melhorem, que Cuba renuncie às ideias pelas quais tem lutado durante mais de um século, pelas quais seu povo derramou muito sangue e correu os maiores riscos”. Para Raul, “Cuba e Estados Unidos devem aprender a arte da convivência civilizada baseada no respeito pelas diferenças entre os dois governos e na cooperação em áreas de interesse comum visando contribuir para a resolução dos desafios enfrentados pelo hemisfério e o mundo”.

Isso posto, é de se aguardar o desenrolar desse que é um dos acontecimentos mais importantes da atualidade. O tempo dirá que rumo tomará, sobretudo sua influência sobre o prosseguimento da construção do socialismo em Cuba.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Eduardo Cunha abre era regressiva

Paulo Moreira Leite

Com vitória arrasadora na Câmara, candidato do PMDB é adversário da democratização da mídia, da proibição de financiamento de campanha por empresas privadas e outras medidas progressistas

 
Para entender o alcance da votação de hoje na Câmara de Deputados, convém compreender as propostas do candidato vitorioso, o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
 
Ao derrotar Arlindo Chinaglia por 267 votos a 136, Eduardo Cunha cravou a vitória em primeiro turno e deu um golpe duro na agenda de medidas progressistas que o país debateu nos últimos anos. Cunha teve uma vitória arrasadora. Com cinco votos a mais, teria obtido o dobro do apoio obtido pelo petista Chinaglia.

Se o comando da campanha do PT chegou a imaginar uma eleição emparelhada, o resultado mostra uma situação muito mais adversa e difícil. A incapacidade de chegar a um segundo turno mostra o vigor do espírito anti-governo no Congresso.

A reeleição de Renan Calheiros, por uma margem igualmente folgada (49 a 31) sobre Luiz Henrique (PMDB-SC), na disputa pela presidência do Senado, não pode ser desprezada. Mostra que a Casa continua um local de refúgio para o Planalto proteger seus interesses. A votação na Câmara, porém, aponta para um governo de mãos atadas.

Do ponto de vista do cidadão, a vitória de Cunha tira espaço para mudanças essenciais para o país. O novo presidente é adversário absoluto do ponto principal da reforma política, que consiste em proibir financiamento de campanhas eleitorais por parte de empresas privadas. A democratização dos meios de comunicação, que já era um assunto difícil, tornou-se um debate ainda mais complicado, quem sabe inviável. Cunha também é contra qualquer mudança nessa área. Ao fazer menção a Deus e à Sua Vontade durante o discurso em que apresentou sua candidatura, o novo presidente confirmou que irá cultivar a simpatia de correntes evangélicas, que se tornaram a ponta de lança do conservadorismo — no plano do comportamento — no Congresso, a começar pela proteção aos direitos dos homossexuais e a legalização do aborto.

Cunha já assumiu, publicamente, o compromisso de aprovar projeto que dá caráter mandatário às emendas parlamentares — a mais conhecida janela para deputados terem acesso a verbas do Orçamento e irrigar suas bases eleitorais com recursos públicos, de controle difícil e mesmo impossível.

Se foi uma vitória incontestável pelos votos obtidos, a vitória de Eduardo Cunha pode colocar a Câmara numa trilha conservadora com poucos antecedentes em sua história. Mesmo no regime militar, quando a imprensa estava sob censura e os generais não hesitavam em cassar mandatos de parlamentares mais combativos, a Câmara demonstrou uma postura progressista.

Votou contra a cassação do deputado Marcio Moreira Alves. Em 1984 deu maioria de votos para a emenda das Diretas-Já, que só não foram aprovadas porque era preciso atingir o quorum de dois terços. Mas em 1988 fez uma Constituição com vários pontos progressistas, que instituiu o mais prolongado regime de liberdades públicas de nossa história. Em 2005, quando Severino Cavalcanti derrotou o petista Luiz Eduardo Greenhalgh e tornou-se presidente da Câmara, os deputados deixaram claro que queriam atingir o governo — mas não estavam organizados em torno de uma plataforma conservadora, como a de Eduardo Cunha.

No meio da tarde, quando estava claro que Arlindo Chinaglia dificilmente chegaria a votação imaginada nos dias anteriores, um parlamentar fazia uma confissão numa rodinha de colegas: “Eu não gostei de nada daquilo que a Marta Suplicy disse ao romper com o governo. Mas sou obrigado a concordar com uma coisa que ela disse: ou o PT muda ou acaba.”

Para o governo Dilma Rousseff, a vitória de Eduardo Cunha não poderia ocorrer num momento pior. Aguarda-se para os próximos dias a divulgação, por parte do Procurador Geral da República, da relação de dezenas de políticos e autoridades com direito a foro privilegiado que são acusadas na Operação Lava Jato. Conforme o volume de acusados, e por sua qualificação na estrutura do governo, pode-se imaginar o tamanho do estrago a ser produzido quando isso acontecer — e seu reflexo numa Câmara que ontem mesmo já discutia a reabertura das CPIs da Petrobrás.

O tempo irá dizer como um Congresso com este perfil, à direita, irá conviver com um país que tem dado sinais à esquerda, como se viu na reta final eleição presidencial. Não custa observar que as urnas de 2015 repetiram, o mesmo comportamento de três eleições presidenciais anteriores.
As chances de choque político e paralisia do Estado são grandes, como se vê nas sucessivas tensões entre o democrata Barack Obama e o Congresso dos EUA, republicano num padrão radical, onde se assiste a um conflito semelhante. A diferença reside na postura do Judiciário.

Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, no Brasil a Justiça tem assumido uma postura de oposição ao governo Lula-Dilma desde o processo da Ação Penal 470. Em artigo publicado neste domingo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso decidiu apoiar a Operação Lava Jato como um caminho não apenas para apurar e punir responsabilidades entre empresas e políticos acusados de corrupção, o que sempre irá merecer aplauso, mas também para modificar o sistema político, atribuição que pertence ao Congresso.

FHC escreveu: “ou há uma regeneração ‘por dentro’, governo e partidos reagem e alteram o que deve ser alterado, ou a mudança virá “de fora”. O ex-presidente acrescentou: “no passado, seriam golpes militares. Não é o caso, não é desejável nem se veem sinais.” O presidente conclui: “Resta, portanto, a Justiça.”

Neste ambiente, o Planalto conseguiu uma vitória importante ao garantir a vitória de Renan Calheiros no Senado. A maioria no Senado pode auxiliar o governo a derrubar projetos de lei aprovados pela Câmara de Deputados, ainda que o preço seja, sempre, algum desgaste. O senado tem a última palavra em diversos matérias financeiras. Renan Calheiros mostrou sua fidelidade ao Planalto quando impediu a realização de uma sessão no qual a oposição pretendia debater a mudança no superávit primário, assunto que poderia colocar, inclusive, forçando um debate sobre impeachment da presidente. Os membros do senado ainda tem o poder de aprovar — ou reprovar — as indicações de Dilma ao Supremo Tribunal. Já existe uma vaga a ser preenchida, deixada pela aposentadoria de Joaquim Barbosa. No final do ano, abre-se outra, de Celso de Mello, que completará 70 anos. São posições de grande importância, quando se avalia os próximos passos da Lava Jato. A decisão de aprovar um processo de julgamento do presidente da Republica necessita do voto de dois terços dois deputados, ou 342 cabeças. Caso o processo seja aprovado, o julgamento ocorre no Senado.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

No primeiro dia, governo grego cancela privatizações

 Esquerda.net
matthew_tsimitak / Flickr
O novo ministro da Energia da Grécia, Panagiotis Lafazanis, anunciou esta quarta-feira que vão ser cancelados os planos de privatização da Empresa Pública de Energia (DEH, sigla em grego), da qual o Estado grego ainda é o acionista maioritário.
 
A chamada “liberalização do mercado energético” foi uma das condições impostas pela troika à Grécia. O governo anterior tinha aprovado legislação para vender 30% da empresa aos grupos privados, mas o Syriza prometera durante a campanha cancelar esse e outros planos de privatização. A promessa está assim a ser cumprida no primeiro dia do governo liderado por Alexis Tsipras.

Lafazanis disse ainda que a eletricidade e o gás natural são muito caros na Grécia e não ajudam os cidadãos, anunciando que o governo vai preparar um novo plano para a energética. Para já, disse o ministro, o governo irá fornecer energia gratuita a 300 mil lares de famílias que viram o fornecimento cortado por não conseguirem pagar as contas.

Porto do Pireu também não será privatizado

Também a privatização do porto do Pireu, o maior da Grécia, foi suspensa. O governo anterior estava a vender 67% da Autoridade Portuária do Pireu ao Grupo Cosco (chinês). “O negócio com o Cosco será revisto em benefício do povo grego”, disse o vice-ministro Thodoris Dritsas, esclarecendo que o caráter público do porto do Pireu será mantido.

Também o ministro adjunto para a Infraestrutura, Christos Spirtzis, anunciou o cancelamento da privatização de infraestrutuas, como os aeroportos. Entre outras medidas, o governo anterior previra a privatização de 14 aeroportos regionais e a venda de milhares de hectares do antigo aeroporto de Atenas.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Lições gregas podem ser úteis ao Brasil



por Paulo Moreira Leite, publicado originalmente em seu site.
 
 
A vitória do Syriza nas eleições gregas, já admitida por seus adversários, lembra uma dessas viradas históricas na vida de um país.
 
Terá profunda repercussão na Europa, onde Espanha, Portugal e Itália, enfrentam um recessão prolongada depois do colapso financeiro de 2009.

A vitória pode produzir efeitos imprevisíveis sobre a economia mundial, caso, perante uma enfática manifestação das urnas, a União Europeia se mostre sem disposição política  para aliviar o sufoco de cinco anos dessa população de 9,8 milhões, o que pode gerar novas ondas de choque e instabilidade.
A causa do resultado eleitoral é fácil de ser decifrada. Envolve questões universais, que preocupam a humanidade em toda parte — emprego, recessão, colapso de serviços públicos — e costumam resolver eleições no mundo inteiro. Até por essa razão, permite paralelos com o Brasil.

Lula e Dilma teriam sido aniquilados, levando consigo as conquistas obtidas pela população a partir de 2003, como aconteceu com os social-democratas do Pasok, caso o governo brasileiro tivessem seguido a política que Atenas praticou nos últimos cinco anos — e que era recomendada pelos centros financeiros internacionais.

Se a eleição deste domingo na Grécia reuniu conflitos típicos da luta de classes também colocou, de forma aguda, a questão nacional. A crise de 2009 colocou o conflito da soberania nacional da Grécia frente aos poderes coloniais das grandes economias europeias, que nos últimos cinco anos submeteram o conjunto da população a um programa de descontrução da economia local.

E é por que tem esse caráter nacional que a eleição abriu caminho para uma remodelagem do sistema político, anunciando uma aposentadoria prolongada — quem sabe falencia definitiva — de partidos tradicionais.
Após uma austeridade prolongada e selvagem, num ambiente de chantagem no qual os mercados atravessaram várias regras da democracia para impor seus interesses — inclusive para impedir um referendo onde o povo diria sim ou não às propostas de austeridade — o eleitorado foi às urnas para fazer o ajuste de contas com a pobreza, o desemprego e a falta de perspectiva.

A mensagem é clara: venceu um partido que há poucos anos tinha uma presença simbólica ao lado de legendas tradicionais — mas cresceu com um discurso firme contra os programas de pobreza. O crescimento de um partido nazista dá bem uma ideia do ambiente de radicalização e confronto em que se encontra a Grécia.

Como acontece em países onde a situação atingiu um patamar desesperado — nos últimos anos, famílias de classe média arruinada disputavam vagas na fila das instituições de caridade destinada preferencialmente a população pobre — era possível encontrar eleitores do Syriza nos bairros chiques, nas lojas de artigos de luxo, entre empresários que em outros tempos eram votos assegurados à direita, revela Helen Smith, correspondente do Guardian em Atenas.

Os bilionários programas aprovados pela Troika — União Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional — destinavam-se a confortar os credores estrangeiros, ampliando a dívida do país – sem nada deixar para os investimentos que poderiam animar a economia e os programas sociais que protegiam o povo.

É normal, assim, que empresários e ex-empresários locais, interessados em reativar seus negócios, voltassem sua atenção a uma sigla que, em outros tempos, só causaria repulsa. A vitória teria sido ainda mais expressiva se, numa manobra burocrática, o governo conservador da Nova Democracia não tivesse impedido o alistamento de uma numerosa parcela de eleitores jovens — evitando a presença, nas urnas, da parcela mais sacrificada da população, reservatório natural de votos para o Syriza.

Do ponto de vista da economia, as urnas de domingo se encerram com vários pontos de interrogação — a começar pela provável resistência do governo de Angela Merkel para aceitar mudanças na política da União Europeia em relação a Grécia, permitindo que o país tenha acesso a uma parcela do pacote superior a 1 trilhão de euros recém-aprovado pelo Banco Central Europeu, que poderia dar oxigênio para a economia, estimulando os investimentos, o crédito e o crescimento. O futuro do governo do Syriza irá depender, fundamentalmente, de sua capacidade de conservar o apoio popular para transformar as propostas de palanque em medidas concretas, capazes de aliviar o imenso sofrimento da população grega e abrir uma nova perspectiva para o país.

Para os brasileiros, chega a ser irônico que, seis anos depois da crise dos derivativos, os gregos tenham escolhido um governo que denuncia a austeridade e, há um mês, em Brasília, Dilma Rousseff tenha escolhido Joaquim Levy para ocupar o ministério da Fazenda, no lugar de Guido Mantega, que teve um papel decisivo na política de estímulo que permitiu ao país atravessar a crise de 2009.

A verdade é que não há termo de comparação entre os programas impostos a Grécia ao longo dos últimos anos e as propostas de ajuste que Levy e a equipe econômica. São universos separados pela geografia, pela história e pela política. Mas o afundamento do tradicional sistema político da Grécia demonstra que o eleitorado costuma ser impiedoso com partidos que não correspondem a suas promessas e compromissos. A indignação do eleitorado explica por que o desgaste do conservador Nova Democracia, que aplicou os programas de austeridade, encurvado perante a Troika, tenha sido até menor que o desmoronamento dos socialistas, eleitos com a promessa de promover o bem-estar e proteger os direitos dos trabalhadores.

O principal objetivo do ajuste consiste em recuperar a confiança dos empresários, mercadoria que, concordam monetaristas e desenvolvimentistas, é indispensável para fazer a economia capitalista funcionar. Comprometida com a perspectiva de  “arrumar a casa”, a presidente tem se demonstrado particularmente zelosa quando se trata dos direitos dos trabalhadores. É bom que seja assim.

Três dias depois de ser empossado no Ministério do Planejamento, Nelson Barbosa anunciou que estava em curso uma mudança na legislação do salário mínimo. Acabou obrigado pela presidente a divulgar uma nota à imprensa na qual dizia que tudo seguirá como está. Na semana passada, quando o Financial Times atribuiu a Joaquim Levy a afirmação de que o seguro-desemprego estava ultrapassado, o próprio ministro da Fazenda foi levado a divulgar nota corrigindo o jornal. Para que não restasse um fiapo de dúvida, o ministro Miguel Rossetto, secretário particular da Presidência da República, definiu o seguro-desemprego como cláusula pétrea, conceito constitucional em que se encontra a proibição do país produzir armas nucleares, por exemplo.

domingo, 25 de janeiro de 2015

A crise, o Brasil, os dilemas de Dilma

Por Walter Sorrentino*

Governo que vem de acentuar a férrea fórmula macroeconômica, ancorada agora na retomada do superávite primário, a qual decididamente não é a que o país precisa para avançar. Ficou escrito: o país não vai retomar o crescimento em 2015, quiçá em 2016. A medida acrescenta combustível para instabilidades sociais e, naturalmente, agudiza instabilidades políticas, quanto a coesionar a base de sustentação no Congresso, sem falar dos desdobramentos da Operação Lava a Jato.

No primeiro semestre de 2014, PT e PCdoB confluíram nas propostas para a campanha Dilma tendo por centro a realização das reformas estruturais. Para ambos, o desafio da produtividade e competitividade da economia brasileira eram centrais, para o quê a elevação dos investimentos públicos e privados em inovação era a base.

Em junho de 2014, o PCdoB ofereceu ao programa da disputa diretrizes básicas interligadas, entre as quais o redesenho da política macroeconômica. O superávit primário deveria, para isso, ter duas submetas explícitas e obrigatórias: uma, financeira, de estabilizar a dívida pública; outra, de meta fiscal para maior investimento público. Ao mesmo tempo, propôs ampliar para 36 meses o horizonte para o cumprimento da meta da inflação, permitindo acomodar instabilidades e, simultaneamente, promover a desindexação de contratos progressivamente – causa notável da inflação brasileira. Por fim, nesse desenho, deveria se buscar uma taxa de câmbio competitiva, praticando uma política industrial horizontal capaz de diminuir custos da produção.

Mas, perante a situação econômica do país e do mundo, Dilma tratou de “recompor a confiança dos investidores”, “arrumar a casa”, mediante a âncora de um ajuste fiscal, com subsequente cortes no orçamento, elevação dos juros e “ajoelhar-se no milho” para comprovar a confiança de honrar a dívida pública mediante superávit primário.

O fato é que a opção tomada, com a nova orientação no Ministério da Economia, promoverá ajuste recessivo da economia, com diminuição da capacidade de investimento público, elevação dos juros e “ajoelhando-se no milho” para demonstrar capacidade de honrar a dívida pública mediante o superávite primário, pesado ônus que consumirá energias do país em benefício dos financiadores da dívida pública, predominantemente rentistas.

Enfim, a Presidenta manobrou para sair da tentativa de isolamento e cerco a que está submetida por parte dos setores conservadores políticos e midiáticos. É uma gestão política da situação, nas condições de força existente no Brasil em meio à crise econômica mundial em curso. Estabeleceu-se uma espécie de consórcio respeitado de parte a parte, com desejadas fronteiras e prazos definidos, entre o programa da disputa presidencial sustentada pela candidata e a indicação de Levy ao Ministério da Economia. Aparentemente, espera-se que seja um freio de arrumação, um passo atrás, para permitir dois passos ulteriores à frente, ainda durante o seu mandato.

A grita se avoluma, à esquerda e à direita. Nem sempre com muita luz, sempre com muito calor.

A força atuante de fundo é que o país segue aprisionado nas tenazes do tempo.

À direita é preciso desmascarar sua falácia. Não há porque subestimar o peso da crise econômica mundial. Fora dela não se compreenderá nada das relações de força que de desdobram no mundo atual. Em última instância, o sistema financeiro resgatou-se da crise emitindo dinheiro contábil, com profundos efeitos sociais regressivos, que comprometem toda uma geração. Resgate que sequestra os próprios Estados nacionais e Bancos Cenrais em sua lógica financeira, e aprofunda a crise econômica e social. Afinal, foi respondida a pergunta feita em 2008 se os países emergentes seriam capazes de sustentar o ritmo da economia mundial. Não foram. Enfrenta-se a terceira onda da crise, afetando o crescimento econômico dos países emergentes, após a aguda situação nos EUA, primeiro, seguida da crônica situação europeia e japonesa, aquela patinando na austeridade. Estagnação é o mote mundial, coexistindo com deflação nos países mais centrais e inflação nos emergentes, com as exceções de praxe.

O Brasil não foi imune a isso. Tem que arcar com o movimento das economias mais poderosas em face da formidável luta em torno de interesses de Estados e blocos. Os profundos efeitos desestablizantes sobre os países emergentes das ações de facilitação quantitativa promovida pelos EUA e, agora, Europa, bem o demonstram, jogando a relação dólar-real numa gangorra.

Aliás, após a descoberta do Pré Sal e a mudança de paradigma em sua exploração, o Brasil entrou ne tela de radar de modo mais agudo e central: a espionagem flagrada por parte dos EUA; a IV Frota no Atlântico Sul, pressões quanto ao preço das comodities etc, estão longe de serem eventos de geração espontânea. Afinal, está se lidando com o status quo dominante mundial imperialista (a palavra é bem usada, creiam), ainda inexpugnado, que é a força das finanças e a hegemonia da orientação econômica e cultural neoliberal. Como dizia Lênin, são forças capazes de arrastar nações inteiras ao abismo, hoje ainda mais que em seu tempo.

À esquerda, não há porque desconsiderar esse panorama mundial constrangendo a economia brasileira e reduzindo suas margens de manobra. A nação não tem ainda as forças necessárias para a inteira defesa de seu interesse e Estado nacional, em meio a essa realidade de crises e instabilidades mundiais. Nesse sentido, não foram os erros, mas a coragem, que se deve destacar nas medidas arrojadas tomadas pelo primeiro governo Dilma: juros em queda, mantendo emprego, renda, elevação dos salário mínimo, estimulando o consumo e os investimentos públicos, num movimento contracíclico.

É preciso considerar que fora da política não há como nenhum governo gerir os dilemas e contradições com que se lida. Seria inconsequente a crítica que não levasse isso em conta. Falar em submissão de Dilma seria desconsiderar a integridade e os compromissos da presidenta, e fazer vistas grossas ao fato de que a indicação de alguém como Joaquim Levy para a Economia teve a pressão de Lula, nada mais, nada menos – um cálculo político, portanto.

Falar em viragem estratégica, como foi a de Miterrand na França em 1982, que perdurou pelos outros 13 anos de seus mandatos, é ficar nas analogias aparentes. Não há porque deixar de reiterar a confiança da pregação da candidata, quanto a não aceitar retrocessos no emprego, renda, salário e conquistas sociais. Ela é íntegra e consequente, tem claro o norte. Seu governo deverá ser julgado em quatro anos deste novo mandato.

O que é indispensável é a crítica progressiva, a que esclarece, une forças, apresenta alternativas, mobiliza. Para isso as forças de esquerda, políticas e sociais, não precisam nem podem ocupar o mesmo lugar político do governo, embora devam sustentá-lo contra o retrocesso do projeto estratégico.

Diante da nova orientação macroeconômica, não há, portanto, por que as forças políticas e sociais avançadas deixarem de batalhar renhidamente contra quaisquer retrocessos sociais – até ajuda-se a presidenta em seu compromisso. Envolve pressão, luta autônoma para disputar o governo e, sobretudo, a sociedade. Envolve constituir consensos e mobilizações mais elevados e avançados. Por que um ajuste fiscal com superávite que premia os detentores de títulos públicos com altos juros, condenando a produção e consumo? Por que não, mesmo que essa manobra se impusesse temporariamente, uma reforma tributária, num novo consenso de distribuição de renda e diminuição das desigualdades? Por que não firmar nova parcela do Fundo Social do Pré-Sal para investir em um grande esforço de inovação para a produtividade e competitividade da economia brasileira, destacada nas propostas do PCdoB apontadas acima?

Por que não imposto sobre herança e sobre grandes fortunas, se se precisa ampliar a arrecadação? Por que não caminhar, progressivamente, para um pacto universalista na disputa do orçamento público, ou seja, voltado para os grandes empreendimentos da reforma urbana, saúde e educação?

O governo não pode garantir tudo que o povo trabalhador, a nação e seu projeto estratégico carecem – isso era uma ilusão (ou acomodação) no tempo do lulismo. O mínimo que se pode dizer é que a sociedade brasileira está inquieta, em parte temerosa de retrocessos no crescimento econômico e de suas conquistas, em parte aspirando a mais conquistas. Inquieta mas em boa parte desreferenciada politicamente. A esquerda brasileira não pode perder seu principal ativo: estabelecer uma agenda mais ambiciosa, para um horizonte mais largo e profundo, um projeto de nação e de Estado nacional capaz de sustentá-lo.

O que é preciso são forças mais poderosas para avançar. O governo e seu poderio são parte delas, por isso lutamos tanto por conquistá-lo e sustentá-lo. Mas a parada se decide em luta, em mobilização pela força das ideias e mobilização de largos contingentes sociais, novos consensos que gerem referências políticas renovadas para lidar com uma sociedade que vivencia profundas transformações progressivas materiais e espirituais.

Essa reunião de forças está a exigir um bloco político-social de esquerda e progressista, para atuar com uma plataforma comum, respeitando as contradições existentes nesse campo, agindo no governo e nas ruas, nos movimentos sociais e na sociedade civil, disputando as opiniões na sociedade. Sem isso, vence-se eleições, mas não se tem hegemonia política e cultural. Sem isso, blasfema-se contra a escuridão, mas não se faz luz nem movimento. A “cara” desse bloco é a grande luta pelas reformas reformas estruturais, acentuadas na campanha e reclamadas pela sociedade.


*Walter Sorrentino é médico e secretário nacional de Organização do PCdoB. Texto originalmente publicado no portal Vermelho.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Concentração da riqueza e perspectiva do socialismo

José Carlos Ruy *

Não se pode considerar apenas do ponto de vista moral o relatório divulgado nesta semana pela Oxfam sobre a concentração da riqueza no mundo, por escandalosos que sejam os números apresentados. A realidade objetiva ali descrita ilustra a essência do capitalismo e é dessa maneira que aqueles dados precisam ser avaliados.

Ele tem um título significativo: Wealth: having all wanting more (Riqueza - tendo tudo e querendo mais, numa tradução livre; o relatório pode ser lido, em inglês, no endereço http://www.oxfam.org/sites/www.oxfam.org/files/file_attachments/ib-wealth-having-all-wanting-more-190115-en.pdf ).

Ele descreve uma situação que não é nova nem surpreendente para os analistas criticos do capitalismo - sistema cuja tendência, como Karl Marx denunciou faz mais de 150 anos, é concentrar de maneira extrema a riqueza no polo formado pelos donos do capital e disseminar a pobreza por todo lado.

Concentrar renda e riqueza faz parte da natureza do modo de produção capitalista. O relatório da Oxfam é a descrição mais recente e atualizada dessa tendência que se acentuou nas últimas décadas: aquele 1% de privilegiados viu sua parcela da riqueza crescer 60% nos últimos 20 anos apesar da crise econômica.

Aquela parcela mínima de seres humanos privilegiados detinha, em 2014, 48% da riquerza existente, e sua parcela cresce apesar da crise econômica mundial. Em 2009, eram donos de 44% da riqueza; daqui a dois anos, sua fatia poderá superar 50% do total, dando então àquele 1% mais riqueza do que terão todos os demais 99% dos seres humanos.

Outro dado que ilustra essa extrema concentração mostra que apenas 80 supermiiionários tem mais dinheiro do que a metade mais pobre dos habitantes do planeta, formada por , 3,5 bilhões de pessoas. Esse dado fica ainda mais dramátrico quando se leva em conta que mais de um bilhão de pessoas mal tem dinheiro para comer, sendo forçadas a sobreviver com menos de R$ 3,00 (três reais) por dia.

Segundo o relatório, considerando o grupo intermediário dos 20% da população (que seria dono de 46% da riqueza), sobraria para os demais 80% dos seres humanos apenas 5,5% da riqueza existente. Pelo cálculo da Oxfam, cada um dos mais ricos tem tanto dinheiro quanto 700 dos mais pobres!

A Oxfam surgiu na Inglaterra em 1942 para combater a fome e a pobreza. Ela faz parte de uma linhagem de organizações que aparecem de tempos em tempos para tentar dar uma face mais “humana” ao capitalismo.

Neste sentido, o relatório agora divulgado tem o objetivo de sensibilizar os multimilionários reunidos no Fórum Econômico Mundial em Davos (Suíça) onde vai debater os problemas e impasses provocados pela extrema concentração da riqueza. Na mais autêntica linhagem dos socialistas utópicos do passado, que se dirigiam aos muito ricos por reformas no capitalismo, dirige-se à cúpula multimilionária com o mesmo objetivo.

Winnie Byanyima, diretora-executiva da Oxfam e co-presidente do Fórum Econômico Mundial, não esconde a perplexidade e preocupação com os dados recentes e pensa que se a tendência à concentração não for controlada, haverá uma ameaça à estabilidade global. "A amplitude das desigualdades mundiais é vertiginosa", disse.

O estudo reafirma a existência de riscos que já apontou em relatórios anteriores. Além da ameaça cada vez maior de guerras e de crises políticas, a concentração de riqueza em poucas mãos de poucos inibe o desenvolvimento da economia e representa riscos ambientais.

Estas questões, que são relevantes, impõe uma pergunta: é possível, no limiar do modo de produção capitalista, eliminar os males apontados?

O modo de produção capitalista prepara, em seu desenvolvimento, as condições para a nova forma de organizar a vida que vai substituí-lo. Um modo de produção resulta do desenvolvimento econômico, social, cultural e ideológico da humanidade e, até agora, nenhum deles foi eterno, qualidade de durabilidade no tempo que o capitalismo também não tem. O capitalismo,desde que surgiu, fez a riqueza disponivel avançar de maneira nunca vista até então, e isto foi reconhecido pioneiramente por Marx e Engels, no próprio Manifesto do Partido Comunista, de 1848.

Mas, ao lado da riqueza e dos avanços, o modo de produção capitalista trouxe contradições que pensalizam o povo e os trabalhadores. A mais severa delas talvez seja a tendência natural no capitalismo da concentração da renda e da riqueza.

Esta tendência pode ser vista também como uma das contradições que pode acelerar a superação final deste sistema por outra forma de organização da vida. Por várias razões. Uma delas decorre do fato de que a concentração de renda e riqueza, que se acelera nos momentos de crise econômica deste sistema, coloca em xeque o funcionamento da lei do valor e pode comprometer a capacidade do capitalismo reproduzir-se como sistema.

A tendência à concentração opera aqui de duas maneiras, ambas igualmente nocivas para o sistema capitalista. Por um lado, ela cresce nos momentos em que as crises econômicas provocam desemprego em massa e queda nos salários dos trabalhadores. São momentos em que se acentua a concorrência intercapitalista, provocando maior aplicação da ciência à produção capitalista (a chamada tecnologia). Ao lado disso crescem também os investimentos financeiros, quase sempre improdutivos (buscam ganhos em juros e não na produção). O resultado aqui é o velho conhecido dos trabalhadores: o desemprego em massa.

Em consequência há forte queda na produção de riqueza nova e, assim, da mais valia apropriada pelo capital. Dito de outra maneira, a queda nos investimentos produtivos, o desemprego e a crescente aplicaçlão da ciência à produção alteram aquilo que Marx chamou de “composição orgânica” do capital. Cresce o chamado capital constante (máquinas e equipamentos) e diminui a parcela relativa do capital variável (formado pelos salários pagos aos trabalhadores). Como a taxa de lucro na produção capitalista resulta da relação entre capital constante e capital variável, a alteração em que aquele cresce e este diminui tem uma consequência funesta para o capital: a tendência à queda na taxa de lucros. Com o corolário das dificuldades crescentes para a reprodução do capital.

Uma das ameaças citadas no relatório da Oxfam pode ser entendida como uma referência a estas dificuldades; ela diz respeito explicitamente às ameaças que a concentração de riqueza representa para o desenvolvimento da produção.

Outro aspecto das “ameaças” representadas pela concentração de renda e riqueza é aquele em que esta concentração pode ser encarada como uma antessala do socialismo. Riqueza e propriedade concentradas em poucas mãos significam também o aumento do número de pessoas dedicadas à sua administração. Um capitalista não é um super-homem com poderes excepcionais e capaz de administrar sozinho, ou num pequeno grupo, tanta propriedade e dinheiro. É um trabalho que exige verdadeiros exércitos de trabalhadores, em escritórios ou mesmo nas formas contemporâneas de trabalho em domicílio. Eles aplicam seus conhecimentos e talentos para gerir propriedades e interesses alheios. Ao dedicar-se a esta tarefa antecipam também tarefas semelhantes que poderão desempenhar no futuro - só que num sistema de outra natureza, gerido por uma lógica oposta à do capitalismo. Se neste sistema servem ao lucro e à ganância, num sistema que o substitua poderão servir à vida e ao bem estar de todos. 


De novo está recolocada para a humanidade a mesma encruzilhada já apontada faz tantos anos por Engels e Rosa Luxemburg: socialismo ou barbárie. A humanidade acumulou conhecimentos e produção material suficientes para um novo passo civilizatório. E só a ousadia desse passo poderá significar a superação das mazelas e ameaças apontadas pelo relatório da Oxfam.

 
José Carlos Ruy é jornalista, membro da Comissão Editorial da revista Princípios e do Comitê Central do PCdoB            

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O terror, o "ocidente" e a semeadura do caos

Por Mauro Santayana, em sua coluna do Jornal do Brasil

Há alguns dias, terroristas franceses, ligados, aparentemente, à Al Qaeda, atacaram a redação do jornal satírico parisiense Charlie Hebdo, em represália pela publicação de caricaturas sobre o profeta Maomé.

Doze pessoas foram assassinadas, entre elas alguns dos mais famosos cartunistas e intelectuais do país, e dois cidadãos de origem árabe, um deles, estrangeiro, que trabalhava há pouco tempo na publicação, e um membro das forças de segurança que estava nas imediações.

Logo em seguida, houve, também, outro ataque, a um supermercado kosher na periferia de Paris, em que 4 judeus franceses e estrangeiros morreram.

Dias depois, milhões de pessoas, e personalidades de vários países do mundo, se reuniram nas ruas da capital francesa, para protestar contra o atentado, e se manifestar contra o terrorismo e pela liberdade de expressão.

Na mesma primeira quinzena de janeiro, explodiram carros-bomba, e homens-bomba, também ligados a grupos radicais islâmicos, no Líbano (Beirute), na Síria (Aleppo), na Líbia (Benghazi), e no Iraque (Al-Anbar), com dezenas de mortos, em sua maioria civis.

Mas, como sempre, não seria normal esperar que algum destes fatos tivesse a mesma repercussão do atentado em Paris, capital de um país europeu, ou que a alguém ocorresse produzir cartazes e neles escrever Je suis Ahmed, ou Je suis Ali, ou Je suis Malak, Malak Zahwe, a garota brasileira, paranaense, de 17 anos, que morreu na explosão  de um carro-bomba, junto com mais 4 pessoas (20 ficaram feridas), no dia 2 de janeiro, em Beirute.

No entanto, os homens, mulheres e crianças, mortos, todos os dias, no Oriente Médio e no Norte da África, são tão frágeis e preciosos, em sua fugaz condição humana,  quanto os que morreram na França,  e vítimas dos mesmos criminosos, criados pela onda de radicalização e rápida expansão do fundamentalismo islâmico, nos últimos anos.

Raivosas, autoritárias, intempestivas, numerosas vozes se alçaram, em vários países, incluído o Brasil, para gritar - em raciocínio tão ignorante quanto irascível - que o terrorismo não tem que ser "compreendido" e, sim, "combatido".

Os filósofos e estrategistas chineses ensinam, há séculos, que sem conhecê-los, não é possível vencer os eventuais adversários, nem mudar o mundo.

Além disso, não podemos, por aqui, por mais que muitos queiram emular os países "ocidentais", em seu ardoroso "norte-americanismo" e "eurocentrismo", esquecer que existem diferenças históricas, e de política externa, entre o Brasil, os EUA, e países da OTAN como a França. 

Podemos dizer que Somos Charlie, porque defendemos a liberdade e a democracia, e não aceitamos que alguém morra por fazer uma caricatura, do mesmo jeito que não podemos aceitar que uma criança pereça bombardeada pela OTAN no Afeganistão ou na Líbia, ou porque estava de passagem, no momento em que explodiu um carro-bomba, por um posto de controle em Aleppo, na Síria.   

Mas é preciso lembrar que, ao contrário da França, nunca colonizamos países árabes e africanos, não temos o costume de fazer charges sobre deuses alheios em nossos jornais, não jogamos bombas sobre países como a Líbia, não temos bases militares fora do nosso território, não colaboramos com os EUA em sua política de expansão e manutenção de uma certa "ordem" ocidental e imperial, e, talvez, por isso mesmo - graças a sábia e responsável política de Estado, que inclui o princípio constitucional de não intervenção em assuntos de outros países - não sejamos atacados por terroristas em nosso território.

As raízes dos atentados de Paris, e do mergulho do Oriente Médio na maior, e, com certeza, mais profunda  tragédia de sua história, não está no Al Corão ou nas charges contra o Profeta Maomé, embora estas últimas possam ter servido de pretexto para ataques como o que ocorreu em Paris.

Elas começaram a se tornar mais fortes, nos últimos anos,  quando o "ocidente", mais especificamente alguns países da Europa e os EUA, tomaram a iniciativa de apoiar e insuflar, usando também as redes sociais, o "conto do vigário" da Primavera Árabe em diversos países, com a intenção de derrubar regimes nacionalistas  que, com todos os seus defeitos, tinham conquistado certo grau de paz, desenvolvimento e estabilidade para seus países nas últimas décadas.

Inicialmente promovida, em 2011, como "libertária", "revolucionária", a Primavera Árabe iria,  no curto espaço de três anos, desestabilizar totalmente a região, provocar massacres, guerras civis, golpes de Estado, e alcançar, por meio da  intervenção militar direta e indireta da OTAN e dos EUA em vários países, a meta de tirar do poder,  a qualquer custo, regimes que lutavam para manter um mínimo de independência e soberania em suas relações com os países mais rico

Quando os EUA, com suas "primaveras" - que não dão flores, mas são fecundas em crimes e cadáveres - não conseguem colocar no poder um governo alinhado com seus interesses, como na Ucrânia e no Egito, jogam irmão contra irmão e equipam com armas, explosivos, munições, terroristas, bandidos e assassinos para derrubar quem estiver no comando do país. 

O objetivo é destruir a unidade nacional, a identidade local, o Estado e as instituições, para que essas nações não possam, pelo menos durante longo período, voltar a organizar-se, a ponto de tentar desafiar, mesmo que em pequena escala, os interesses norte-americanos.

Foi assim que ocorreu com a intervenção dos EUA  e de aliados europeus como a Itália e a França - contra a recomendação de Brasil, Rússia, Índia e China, no Conselho de Segurança da ONU -  no Iraque, na Líbia e na Síria. 

Durante décadas, esses países - com quem o Brasil tinha, desde os anos 1970, boas relações - viveram sob relativa estabilidade, com a  economia funcionando, crianças indo para a escola, e diferentes etnias, religiões e culturas, dividindo, com eventuais disputas, o mesmo território.

Estradas, rodovias, sistemas de irrigação, foram construídos - também com a ajuda de técnicos, operários  e engenheiros brasileiros - com os recursos do petróleo, e países como o Iraque chegavam a importar automóveis, como no caso de milhares de Volkswagens Passat fabricados no Brasil, para vender aos seus cidadãos de forma subsidiada. 

Na Líbia de Muammar Kadafi, segundo o próprio World Factbook da CIA, 95% da população era alfabetizada, a expectativa de vida chegava, para os homens, segundo dados da ONU, a 73 anos, e a renda per capita e o IDH estavam entre os maiores do Terceiro Mundo, mas esses dados nunca foram divulgados normalmente pela imprensa "ocidental".   

Pode-se perguntar a milhares de brasileiros que estiveram no Iraque, que hoje têm entre 50 e 70 anos de idade, se, naquela época, sunitas e xiitas se matavam aos tiros pelas ruas, bombas explodiam em Basra e Bagdá todos os dias, como explodem hoje, a qualquer momento, também em Trípoli ou Damasco,  ou milhares de órfãos tentavam atravessar montanhas e rios sozinhos, pisando nos restos de outras crianças, mortas em conflitos incentivados por "potências" estrangeiras, ou tentavam sobreviver caçando, a pedradas, ratos por entre escombros das casas e hospitais em que nasceram.   

São, curdos, xiitas, sunitas, drusos, armênios,  cristãos maronitas, inimigos?

Antes, trabalhavam nos mesmos escritórios, viviam nas mesmas ruas, seus filhos frequentavam as mesmas salas de aula, mesmo que eles não tivessem escolhido, no início, viver como vizinhos.

Assim como no caso de hutus e tutsis em Ruanda, e em inúmeras ex-colônias asiáticas e africanas, as  fronteiras dos países do Oriente Médio foram desenhadas, na ponta do lápis, ao sabor da vontade do Ocidente, quando da partilha do continente africano por europeus, obedecendo não apenas ao resultado de Conferências como a de Berlim, em 1884, mas também à máxima de que sempre se deve "dividir para comandar", mantendo, de preferência,  etnias de religiões e idiomas diferentes dentro de um mesmo território ocupado pelo colonizador.

Eram Saddam Hussein e Muammar Kadafi, ditadores? É Bashar Al Assad, um déspota sanguinário?

Quando eles estavam no poder, não havia atentados terroristas em seus países. 

E qual é a diferença deles e de seus regimes, para os líderes e regimes fundamentalistas islâmicos comandados por xeques e emires, na mesma região, em que as mulheres - ao contrário dos governos seculares de Saddam, Kadafi e Assad - são obrigadas a usar a burka, não podem sair de casa sem a companhia do irmão ou do marido,  se arriscam a ser apedrejadas até a morte ou chicoteadas em caso de adultério, e não há eleições, a não ser o fato de que esses regimes são dóceis aliados do "ocidente" e dos EUA?

Se os líderes ocidentais viam Kadafi como inimigo, bandido, estuprador e assassino, por que ele recebeu a visita do primeiro-ministro britânico Tony Blair, em 2004; do Presidente francês Nicolas Sarkozy - a quem, ao que tudo indica, emprestou 50 milhões de euros para sua campanha de reeleição - em 2007; da Secretária de Estado dos EUA, Condoleeza Rice, em 2008; e do primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi em 2009?  

Por que, apenas dois anos  depois, em março de 2011 - depois de Kadafi anunciar sua intenção de nacionalizar as companhias estrangeiras de petróleo que operavam, ou estavam se preparando para entrar  na Líbia (Shell, ConocoPhillips, ExxonMobil, Marathon Oil Corporation, Hess Company)  esses mesmos países e os EUA, atacaram, com a desculpa de criar uma Zona de Exclusão Aérea sobre o país, com 110 mísseis de cruzeiro, apenas nas primeiras horas, Trípoli, a capital líbia, e instalações do governo, e armaram milhares de bandidos - praticamente qualquer um que declarasse ser adversário de Kadafi - para que o derrubassem, o capturassem e finalmente o espancassem, a murros e pontapés, até a morte?   

Ora, são esses mesmos bandidos, que, depois de transformar, com armas e veículos fornecidos por estrangeiros, a Líbia em terra de ninguém, invadiram o Iraque e, agora, a Síria, e se uniram para formar o Estado Islâmico, que pretende erigir uma grande nação terrorista juntando o território desses três países, não por acaso os que foram mais devastados e destruídos pela política de intervenção do "ocidente" na região, nos últimos anos.        

Foram os EUA e a Europa que geraram e engordaram a cobra que ameaça agora devorar a metade do Oriente Médio, e seus filhotes, que  também armam rápidos botes no velho continente. Serpentes que, por incompetência e imprevisibilidade, depois da intervenção na Líbia,  a OTAN e os EUA não conseguiram manter sob controle.   

Os Estados Unidos podem, pelo arbítrio da força a eles concedida por suas armas e as de  aliados - quando não são impedidos pelos BRICS ou pela comunidade internacional - se empenhar em destruir e inviabilizar pequenas nações - que ainda há menos de cem anos lutavam desesperadamente por sua independência - para tentar estabelecer seu controle sobre elas, seu povo e seus recursos, objetivo que, mesmo assim, nunca conseguiram alcançar militarmente.

Mas não podem cometer esses crimes e esses equívocos, diplomáticos e de inteligência, e dizer, cinicamente, que o fizeram em nome da defesa da Liberdade e da Democracia. 

Assim como não deveriam armar bandidos sanguinários e assassinos para combater governos que querem derrubar, e depois dizer que são contra o terrorismo que eles mesmos ajudaram a fomentar, quando esses mesmos terroristas, além de explodir bombas e matar pessoas em Bagdá, Damasco ou Trípoli, todos os dias, passam a fazer o mesmo nas ruas das cidades da Europa ou dos próprios Estados Unidos.

O "terrorismo" islâmico não nasceu agora. 

Mas antes da balela mortífera da Primavera Árabe,  e da Guerra do Iraque, que levou à destruição do país, com a mentirosa desculpa da posse, por Saddam Hussein, de armas de destruição em massa que nunca foram encontradas - tão falsa quanto o pretexto  do envolvimento de Bagdá no ataque às Torres Gêmeas, executado por cidadãos sauditas, e não líbios, sírios ou iraquianos - não havia bandos armados à solta, sequestrando, matando e explodindo bombas nesses 3 países.

Hoje, como resultado da desastrada e criminosa intervenção ocidental, o terror  do Estado Islâmico, o ISIS, controla boa parte dos territórios e da sofrida população síria, iraquiana e líbia, e, a partir deles, está unindo suas conquistas em torno da construção de uma nação maior, mais poderosa, e extremamente mais radical do ponto de vista da violência e do fundamentalismo, do que  qualquer um desses países jamais o foi no passado.

O ataque terrorista à redação e instalações do semanário francês Charlie Hebdo, e do Mercado Kosher, em Vincennes, Paris, foram crimes brutais e estúpidos. 

Mas não menos brutais, e estúpidos, do que os atentados cometidos, todos os dias, contra civis  inocentes, entre muitos outros lugares, como a Síria, o Iraque, a Líbia, o Afeganistão.

Quem quiser encontrar as sementes do caos que também atingiram, em forma de balas, os corpos dos mortos do Charlie Hebdo poderá procurá-las no racismo  de um continente que acostumou-se a pensar que é o centro do mundo, e que discrimina, persegue e despreza, historicamente, o estrangeiro, seja ele árabe, africano ou latino-americano; e no fundamentalismo branco, cristão e rançoso da direita e da extrema direita norte-americanas, cujos membros acreditam piamente que o Deus vingador da Bíblia deu à "América" do Norte o "Destino Manifesto" de dirigir o mundo.

Em nome dessa ilusão, contaminada pela vaidade e a loucura, países que se opuserem a isso, e milhões de seres humanos, devem ser destruídos, mesmo que não haja nada para colocar em seu lugar, a não ser mais caos e mais violência, em uma  espiral de destruição e de morte, que ameaça a sobrevivência da própria espécie e explode em ódio, estupidez e  sangue, como agora, em Paris, neste começo de ano.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Umberto Eco e o manual do mau jornalismo

"Número Zero", novo romance do escritor italiano, é ambientado em 1992 e mostra a história de um jornal criado para difamar. Texto publicado originalmente pela revista Carta Capital.                               



                
Umberto Eco
Umberto Eco fala sobre o jornalismo em seu novo livro
 
Por Kelly Velazquez
 
O famoso escritor e ensaísta italiano Umberto Eco apresentou nesta semana na Itália seu novo romance, Número zero, uma espécie de manual do mau jornalismo ambientado na redação de um jornal imaginário.

O novo livro do influente intelectual italiano, autor do famoso romance O nome da rosa e de importantes tratados de semiótica, é uma história de ficção ambientada em 1992, um ano particular para a Itália contemporânea, marcado pelos escândalos de corrupção e pela investigação "Mani Pulite" (Mãos limpas), que arrasou com boa parte da classe política da época.

O livro se concentra, sobretudo, nos mistérios não resolvidos que sacudiram nestes anos a Itália, entre eles o protagonizado pela loja maçônica Propaganda 2 do temido Licio Gelli, que queria dar um "golpe branco". "É o primeiro romance de Eco que fala de uma época tão recente", reconhece Elisabetta Sgarbi, diretora da editora Bompiani.

Eco descreve a redação imaginária de um jornal, criado naquele ano, para desinformar, difamar adversários, chantagear, manipular, elaborar dossiês e documentação secreta. "Para mim é um manual da comunicação de nossos dias", sustenta Roberto Saviano, renomado jornalista antimáfia da Itália, que vive sob escolta pelas ameaças de morte que recebe das organizações criminosas.

Em uma conversa entre Eco e Saviano, publicada pela revista L'Espresso, o semiólogo afirma que não quis escrever um "tratado de jornalismo", mas contar uma história sobre os limites da informação, sobre como funciona uma máquina de denegrir, e não tanto sobre o trabalho de informar. "Escolhi o pior caso. Quis dar uma imagem grotesca do mundo, ainda que o mecanismo da máquina para sujar, de lançar insinuações, já fosse usado durante a Inquisição", comentou Eco.

Saviano, que considera que as redes sociais multiplicaram esta forma de denegrir gerando verdadeiros monstros, acredita que o magnata das comunicações e ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi marcou o início dessa era, entre boatos e informações, vida e vícios tanto privados quanto públicos. "Escolhi 1992 porque considero que este ano marca o momento de um declínio na história da sociedade italiana", disse Eco em uma entrevista ao Corriere della Sera.

No livro, o semiólogo se diverte citando frases famosas ou lugares comuns do jornalismo, como "no olho do furacão", "um duro revés" ou "com a água no pescoço". "Não é necessário estrangular a avó para perder a credibilidade. É suficiente contar que o juiz usa meias na cor laranja. Por que será?", contou Eco citando um caso verdadeiro durante uma longa entrevista à RAI.

Graças aos delírios de um redator paranoico, Eco conta fatos concretos, mas reconstruídos a partir de teorias bizarras ou que se entrelaçam estranhamente com outras e que terminam por criar uma nova notícia.

É o caso da loja maçônica P2, do suposto assassinato do papa Luciani (João Paulo I), dos cúmplices das brigadas vermelhas que trabalhavam para os serviços secretos, dos tentáculos da CIA, dos atentados e até de um falso cadáver de Benito Mussolini com o qual conseguiram salvá-lo e enviá-lo à Argentina. Todas são histórias que o leitor não conseguirá determinar se são fatos inventados ou a descrição da realidade, segundo o escritor.

Trata-se do sétimo romance de Eco, que publicou, entre outros, O Cemitério de Praga e O Pêndulo de Foucault.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Por que a extrema esquerda fracassou e acabou isolada

Esse fracasso da extrema esquerda hoje é generalizado nos países de governos progressistas, como Venezuela, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador e Brasil.          

por Emir Sader em seu blogue.     
 

Quando foram sendo eleitos governos na onda do fracasso e rejeição aos governos neoliberais, predominantes nos anos 1990 na América Latina, ao mesmo tempo foram se reconstituindo as forças de extrema esquerda, na crítica desses governos.

Nenhum deles foi poupado, mas inicialmente o governo Lula foi objeto mais concentrado dessas críticas. Motivos não pareciam faltar. Desde a “Carta aos brasileiros”, Lula parecia encaminhar-se para o abandono das teses históricas da esquerda, repetindo a experiência histórica que os trotskistas sempre anunciaram: a social democracia se comporta como força de esquerda, quando está na oposição, mas basta chegar ao governo, para romper com as teses históricas da esquerda, “traindo” a esquerda e os trabalhadores, para se revelar como uma manobra de engano do povo e de continuidade, sob outra forma dos governos da direita.

Uma equipe econômica conservadora, uma reforma regressiva da previdência, discurso tímido – tudo parecia confirmar a tese da “traição”. Cabia, perfeitamente, uma critica pela esquerda, sobre a questão central do período: a superação do modelo neoliberal, que era feita pela esquerda do PT.

Discutia-se se o governo seguia estando sob disputa entre tendências conservadoras e de esquerda, até que um grupo considerou que era um governo “perdido”, saiu do PT e a fundou um novo partido. O grupo foi rapidamente hegemonizado por trotskistas (da tendência morenista, de origem na Argentina), que enquadravam a evolução do PT no governo no modelo clássico da “traição”.

Porém, ao invés de elaborar uma crítica de esquerda e formular alternativas, rapidamente esse grupo pegou carona nas denúncias do “mensalão”, que a mídia lançou contra o PT. Fazendo com que a “traição” tivesse uma conotação de “corrupção”, como sintoma de uma degradação moral do governo.

A líder do grupo, Heloisa Helena, com seu destempero verbal, tratava o governo como “gangue” e com outros epítetos afins, tão ao gosto da classe média. Esse grupo, que supostamente saia pela esquerda para fundar o PSOL, rapidamente somava-se, de maneira subordinada à ofensiva da direita contra o governo.

A campanha eleitoral de 2006 foi a consagração dessa aliança tácita: todos contra o governo Lula, inimigo fundamental de uns e dos outros.  Nela, o PSOL consolidou sua opção pela critica moralista, da “traição” do Lula. Quem trai, se torna cada vez pior, reprime, reproduz exatamente o governo da direita. Dai as armadilhas em que caiu o PSOL.

Se concentrou em tentar demonstrar, primeiro, que não teria havido “herança maldita”, desconhecendo totalmente a profunda e prolongada recessão produzida pelo governo FHC e a situação herdada do Estado, do mercado interno, da exclusão social, da precarização das relações de trabalho, entre outras. Pior ainda do que isso, passou a desconhecer – da mesma forma que a direita – as diferenças do governo Lula com o governo FHC, em particular a prioridade das políticas sociais.

Além de que desconhece que a polarização neoliberalismo/antineoliberalismo é o enfrentamento central do período histórico atual e, por isso, desconhece que o governo Lula faz parte do movimento histórico da região de construção de governos posneoliberais. Desconhece o papel dos novos governos latinoameicanos, como único polo mundial de resistência ao neoliberalismo.

A aliança oportunista com a direita contra o governo Lula se deve à consciência de que só teriam espaço, se o PT fracassasse. Então se somam a essa frente, que toma o governo Lula como seu inimigo fundamental.

A essa aliança se soma a atitude ultra esquerdista de, no segundo turno, entre Lula e Alckmin, ficar equidistante, como se fosse o mesmo que ganhasse um ou outro. Imaginem o Alckmin presidente do Brasil diante da crise de 2008! Bastaria isso para nos darmos conta da posição absurda no segundo turno, mas coerente com a opção feita pelo PSOL.

Depois do brilhareco momentâneo das eleições de 2006, em que o desempenho da Heloisa Helena, presidente do partido, chegou a ser vergonhoso, promovida pela Globo para permitir a chegada ao segundo turno, o perfil do partido claramente baixou. Se deram conta que seu projeto de construir uma alternativa nacional tinha fracassado. A candidatura de Marina, que herdou boa parte dos votos de Heloisa Helena, confirmou isso. As posições posteriores da ex-candidata complementaram a imagem de uma pessoa individualista, reacionária em relação a temas como  o aborto e a democratização dos meios de comunicação, descontrolada, sem condições de liderar um partido de esquerda.

Enquanto isso, ao invés de ser derrotado, o governo Lula, pelos efeitos das politicas sociais, foi ampliando seu apoio popular, de forma constante, até o fim do governo Lula, permitindo a eleição da Dilma.

O desempenho do candidato do PSOL nas eleições seguintes, Plinio de Arruda Sampaio, que contou com muitos espaços na mídia, na mesma busca de votos para chegar ao segundo turno contra o PT, confirmou o fracasso politico do partido, quando teve 1% dos votos, menos até que outros grupos pequenos, com muito menos espaços na mídia. Desde então o partido tem uma postura de marcar posição, sem nunca ter formulado projeto estratégico alternativo para o Brasil, ficando reduzido a uma força do campo de denuncias do “mensalão”.

Enquanto que uma força de esquerda radical deveria, antes de tudo, ter uma analise especifica da sociedade brasileira, do grau de penetração do neoliberalismo, para propor um projeto de superação desse modelo, que articule antineoliberalismo com anticapitalismo. Deveria analisar o governo do PT reconhecendo os avanços realizados e apoiá-los, ao mesmo tempo que criticar suas debilidades. Se propor a ser aliado do governo à sua esquerda, nos aspectos comuns e crítico nos outros.

Teria que apoiar a política externa do governo, suas políticas sociais, seu resgate do papel ativo do Estado nos planos econômico e social. Que apoiar o conjunto de governos progressistas na região, que protagonizar os processos de integração regional.

Caracterizar o governo como  força progressista, força moderada no campo da esquerda, enquanto esse partido seria uma força mais radical do mesmo. Para isso precisaria ter clareza dos inimigos fundamentais, que compõem o campo da direita – EUA, PSDB e seus aliados, a mídia oligárquica, o sistema bancário. Para impedir qualquer risco de se confundir com a direita contra o governo.

Essa via foi inviabilizada pela opção que o PSOL assumiu e reafirmou ao longo do governo do PT, isolando-se, sem apoio popular, valendo-se dos espaços que a mídia direitista lhe concede, quando entende que podem prejudicar o governo.

Virou um partido denuncista, de causas corretas e outras duvidosas. Nem sequer valoriza o imenso processo de democratização social que tem transformado positivamente o Brasil na ultima década.

Esse fracasso da extrema esquerda hoje na é generalizado nos países de governos progressistas – Venezuela, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador -, com desempenhos mais ou menos similares, mas a mesma incapacidade de compreender a natureza do periodo histórico neoliberal e o papel progressista que tem esses governos. A extrema esquerda terminou tomando como seus inimigos fundamentais a esses governos, aliando-se, tácita ou explicitamente à direita contra eles, abandonando a possibilidade de compor um quadro da esquerda, onde seriam a alternativa mais radical. Ficam isoladas, em posturas denuncistas, sem propostas alternativas. Enquanto que os governos progressistas, a esquerda na era neoliberal, se constituem, em escala mundial, na referencia central na luta antineoliberal.