quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

"Não confio na política dos EUA".

Luiz Manfredini *

Há um forte ranço de cautela e desconfiança no processo de reaproximação entre Cuba e EUA, cujo passo inicial – o restabelecimento das relações diplomáticas - foi anunciado no último dia 17 de dezembro pelos presidentes Raul Castro e Barack Obama.


 Obviamente não se deve subestimar tal iniciativa e tal processo, que rompem uma separação – bastante dolorosa para Cuba - de 54 anos. Espera-se que, muito em breve, a Ilha venha a contar com novas e melhores oportunidades para receber investimentos e ampliar seu comércio exterior, com ampla repercussão no desenvolvimento econômico do país e nas condições de vida do povo. Para a economia estadunidense, seduz a oportunidade de aproveitar um mercado tão próximo de 11 milhões de pessoas.

Ainda assim, a precaução dos cubanos e daqueles que lhes são solidários, possui fortes razões históricas. Afinal, os apetites norte-americanos sobre a Ilha – até mesmo para anexá-la ao seu território - remontam ao fim do século 18. Com a vitória da revolução, em 1959, as pressões foram excepcionalmente agravadas, a começar pelo perverso bloqueio comercial, econômico e financeiro imposto a partir de 1961, provocando prejuízos de bilhões de dólares ao país caribenho e sofrimentos enormes ao seu povo.

Além do bloqueio, a desconfiança vê-se também alimentada pelo vasto cardápio de hostilidades dos EUA em relação a Cuba nos últimos 55 anos, todas voltadas para desestabilizar e, por fim, derrubar o regime. Inclui-se aí o financiamento, pela CIA, de mercenários para a invasão da Baía dos Porcos, em 1961, as mais de 600 tentativas de assassinato de Fidel Castro, o envenenamento da agricultura e pecuária cubanas, emissões de rádio e TV e lançamento de panfletos convocando os cubanos a derrubar seu governo, o apoio financeiro e material para a oposição golpista, etc., etc., etc. Tudo isso é muito conhecido.

Não foi por menos que o taxista que me conduzia, alguns anos atrás, a um hotel no centro de Havana, em meio a uma conversa cujo teor já não me recordo, tenha afiançado, convicto: “Los americanos son siempre tramposos”. Também não foi gratuita e desprovida de sentido uma afirmação recente – em fins de janeiro último - do próprio Fidel, em carta enviada à Federação Estudantil Universitária (FEU). Embora sem discordar das iniciativas do governo no sentido da reaproximação, o líder da Revolução Cubana declarou: “Não confio na política dos EUA”.

Suavidade e porrete

Por mais de meio século obstinados em derrubar o socialismo cubano, por que os EUA procederiam agora de modo diferente? Vejamos a afirmação de Barak Obama, no tradicional discurso do Estado da União pronunciado no Congresso: "Estamos pondo fim a uma política que já passou há muito do prazo de validade. Quando aquilo que você está fazendo não funciona há 50 anos, é hora de tentar algo novo". Em outras palavras: o que os EUA patrocinaram até agora para derrotar, pela força, o regime cubano, não funcionou, então “é hora e tentar algo novo”. Para quê? Para continuar, com outros métodos, em busca dos mesmos objetivos.

Isso faz jus à política do “grande porrete (“big stick”), criada pelo presidente estadunidense Theodore Roosevelt para garantir aos EUA um papel de polícia no ocidente, especialmente seus interesses econômicos na América Latina. Ou seja: um forte poder para retaliar caso fosse necessário, com base no provérbio africano “fale com suavidade e tenha à mão um grande porrete”. No caso cubano, o porrete foi usado primeiro. Não funcionou, então agora a alternativa é falar com a suavidade das relações diplomáticas e a tentativa de destruir o socialismo cubano com a invasão do comércio, da cultura e da ideologia.

Em contrapartida aos duvidosos interesses dos EUA, os cubanos, escolados na luta cotidiana por sua soberania, se mantém, como sempre, firmes. Falando na Terceira Cúpula da Comunidade de Estados Latino-americanos e do Caribe (CELAC), que aconteceu dias atrás em San José, capital da Costa Rica, o presidente Raul Castro deixou claro que a “normalização só virá com o fim do bloqueio, com a devolução do território ilegalmente ocupado pela Base Naval de Guantânamo, e com o término das transmissões de rádio e televisão com provocações, transmissões estas que violam as normas internacionais”. A reaproximação também deverá implicar, segundo Raul, numa compensação “justa para o nosso povo pelos danos humanos e econômicos que sofreu” com o bloqueio.

Raul também apontou que “não se deve pretender, para que as relações com Estados Unidos melhorem, que Cuba renuncie às ideias pelas quais tem lutado durante mais de um século, pelas quais seu povo derramou muito sangue e correu os maiores riscos”. Para Raul, “Cuba e Estados Unidos devem aprender a arte da convivência civilizada baseada no respeito pelas diferenças entre os dois governos e na cooperação em áreas de interesse comum visando contribuir para a resolução dos desafios enfrentados pelo hemisfério e o mundo”.

Isso posto, é de se aguardar o desenrolar desse que é um dos acontecimentos mais importantes da atualidade. O tempo dirá que rumo tomará, sobretudo sua influência sobre o prosseguimento da construção do socialismo em Cuba.

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