quarta-feira, 2 de janeiro de 2019




O regime do golpe empossou o da tirania

José Reinaldo Carvalho (*)


A posse de Jair Bolsonaro na Presidência da República mereceu um ruidoso consenso por parte da mídia empresarial e das lideranças conservadoras do mundo político e econômico-financeiro.

Por alguma razão, o ato de investidura no mais alto cargo do país de um político tão desafeto da democracia é designado como “festa da democracia”.

Atribuir caráter democrático ao novo regime e propagar que a democracia lhe deu posse é mais uma dessas falsificações que fazem parte da época das chamadas fake news.

Bolsonaro foi eleito e assume a chefia do Estado e do Governo nos marcos de um golpe de Estado, em que a estabilidade democrática do país foi rompida, resultando no impeachment da presidenta legitimamente eleita, na prisão sem motivos, sob falsa acusação, do maior líder popular do país e na proibição de sua candidatura.

O consenso sobre a “posse democrática” tem sua razão de ser na unidade programática das classes dominantes em torno dos principais pontos da agenda do novo governo: as reformas antissociais, a orientação econômica ultraliberal, o combate às forças de esquerda e o realinhamento internacional do Brasil.

Tudo devidamente encoberto sob juras de respeito à Constituição e à democracia, sendo uma um livro que se pode rasgar sob o impacto de emendas que desnaturam o seu espírito, e a outra um conceito impreciso e vago instrumentalizado segundo as conveniências do governo de turno.

No palavreado tosco do presidente da República, pronunciado em má dicção, busca-se esconder as suas reais intenções sob os bordões que fizeram a glória de sua campanha eleitoral: o “combate” à corrupção e à criminalidade, a “valorização” da família, a formação do Ministério “sem viés político”, a “ruptura” com práticas nefastas, o “direito de defesa” das pessoas e da polícia, e outras expressões que com o tempo se revelarão inócuas platitudes.

São expressões e gestos, tal como a pantomima do discurso em Libras, que se destinam a distrair o público e a revolver os porões do reacionarismo há tempos recalcado. Farão parte da propaganda governamental, serão o substrato do “Ame-o ou deixe-o” do século 21, enquanto a dura realidade dos problemas econômico-sociais e dos conflitos políticos não se impuser. Não tardará a surgir a simbologia do salvador da pátria e da mãezinha protetora de desvalidos, um culto à personalidade mesclando energia e bondade, enquanto os encarregados da economia, da polícia e da segurança – institucional ou não – derem curso a inomináveis crueldades.

Foi o sinal emitido por algumas cenas da cerimônia de Primeiro de Janeiro. A preparação meticulosa do ambiente contou com um ameaçador aparato militar, gestos patéticos e até mesmo uma “quebra do protocolo”. O discurso em Libras da primeira-dama fez parte do roteiro traçado, mas não só. A exibição de força das três armas e a demonstração de afeto na aparição da primeira-dama são signos que apontam para o “novo” estilo de governar. O regime tirânico vai combinar demonstrações de força com mensagens melífluas.

A verdadeira face da tirania aparece quando o presidente ataca os que ele considera “inimigos da pátria, da ordem e da liberdade”, ou proclama o fim do “socialismo”, do “politicamente correto”, da “ideologia de gênero”, da submissão às ideologias” e da vigência das “tradições judaico-cristãs”. E quando jura derramar sangue para defender as cores da bandeira.

Mesmo ignorando os fundamentos mais elementares da ciência política, Bolsonaro sabe que socialismo não houve no Brasil, que não há força política, seja em que espectro for, que defenda a bandeira vermelha como pavilhão nacional ou que proponha o socialismo como alternativa imediata aos graves problemas do país.

São truques da propaganda neofascista. Desde Dwight Eisenhower, o discurso em torno do conceito judaico-cristão é usado como amparo filosófico da guerra fria, da defesa da supremacia imperialista estadunidense, de valores conservadores e da mobilização de forças intelectuais e militantes contra o comunismo, o socialismo e o progressismo. O ghost-writer de Bolsonaro retirou do baú empoeirado a referência às “tradições judaico-cristãs” para justificar os ataques às concepções de democracia e direitos humanos das forças progressistas, com o fim de impor políticas conservadoras e de direita, consistentes no uso de atos repressivos de lesa-humanidade. Não foi por mera retórica que, quando deputado e candidato, o atual presidente exaltou a tortura e os torturadores.

Jair Bolsonaro assume a Presidência da República num país com imensa projeção e importância geopolítica. A corte que lhe fazem o presidente dos Estados Unidos e o líder sionista israelense Benjamin Netanyahu faz parte de um conflito internacional pelo novo ordenamento do mundo, em que a olhos vistos a superpotência norte-americana já não pode fazer o que quer pois já soou o dobre de finados da sua primazia inconteste.

O Brasil não pode enveredar pela senda antidemocrática e antissocial no plano interno, sob pena de sofrer perdas irreparáveis em seu desenvolvimento. Nem pode deixar-se arrastar pelos planos imperialistas dos EUA e Israel, sob o risco de perder irremediavelmente a sua soberania. As demonstrações de sujeição por parte do novo regime causam a justa indignação dos patriotas.

Resistir e lutar contra esse regime é, assim, questão de salvação nacional.

(*) Jornalista, editor de Resistência, membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do PCdoB

Reforma política e corrupção

            

O custo total das campanhas da última eleição foi de 5 bilhões de reais. A consagração legal do financiamento privado consagrará o sistema de corrupção. Samuel Pinheiro Guimarães  

Há um clamor público, uma revolta de todas as classes da sociedade, contra as revelações de corrupção. 


Quando terá começado a corrupção? Quem são os culpados? É um fenômeno exclusivamente brasileiro ou do mundo subdesenvolvido ou humano em geral? A quem interessa? Ocorre apenas no setor público? Será uma característica inata da sociedade brasileira? 

Os incidentes de corrupção que a operação Lava Jato vêm desvendando e que vazam para a imprensa, sem provas e a conta gotas, por quem deveria preservar o sigilo das investigações e a reputação dos acusados (mas não culpados por que não foram julgados) estariam relacionados com o financiamento de campanhas eleitorais.

O sistema de financiamento de campanhas eleitorais está vinculado à representação de interesses econômicos no Legislativo e no Executivo. O caso do Judiciário é um tema a parte, ainda que de grande interesse.

O candidato Aécio Neves gastou em sua campanha eleitoral, de acordo com as declarações ao TSE, cerca de 201 milhões de reais. A candidata Dilma Rousseff gastou cerca de 318 milhões de reais. O custo total das campanhas para presidente, governador, senador e deputado foi de cinco bilhões de reais.

De onde vieram esses recursos? Certamente (ou muito raramente) não vieram da fortuna pessoal dos candidatos, mas sim de doações, principal ou quase exclusivamente, de grandes empresas privadas.

O custo das campanhas é em extremo elevado devido aos custos de produção e de veiculação de programas de televisão, das viagens que se fazem necessárias devido à extensão territorial do país, dos custos de material de propaganda e de sua distribuição.

O objetivo dos que defendem o financiamento privado das campanhas eleitorais está vinculado à principal característica da sociedade brasileira que é a concentração de renda e de riqueza.

A concentração de renda é, em geral, estimada a partir dos rendimentos do trabalho conforme declarados à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE.

Os rendimentos do capital, isto é os lucros, os juros, os aluguéis, são subdeclarados na PNAD e a Secretaria da Receita Federal não publica esses dados de acordo com a sua distribuição por faixa da população, ainda que sem quebra de privacidade dos declarantes do Imposto de Renda.

A estimativa é de que os rendimentos do trabalho correspondam a cerca de 48% da renda nacional.

O salário mínimo é de 788 reais, o salário médio do trabalhador brasileiro é inferior a 2.300 reais por mês e 90% dos brasileiros ganham até cinco salários mínimos por mês.

São 13,7 milhões de famílias que recebem o Bolsa Família. Isto significa que cerca de 50 milhões de brasileiros tem rendimento mensal inferior a 77 reais. Por outro lado, há, no Brasil, cerca de 46 bilionários e 10.300 multimilionários, estes com patrimônios pessoais superiores a 23 milhões de reais.

Muitos são os mecanismos de concentração de renda e de riqueza.

Entre esses mecanismos estão às taxas de juros, o sistema tributário, os créditos do Estado a empresas e o sistema de aluguéis.

Quanto mais elevadas às taxas de juros “autorizadas” ou permitidas pelas autoridades monetárias maior a transferência de riqueza de devedores, que são a enorme maioria da população, para os credores privados, detentores do capital, e do Estado para os seus credores. 

O sistema tributário pode ser regressivo ou progressivo. O sistema se diz regressivo quando a maior parte dos impostos arrecadados provêm da maioria da população, sem distinção de seu nível de renda (imposto sobre o consumo, por exemplo) e se diz progressivo quando os indivíduos detentores de maior riqueza ou de mais alto nível de renda pagam mais impostos mesmo em proporção a sua riqueza ou renda. É fato que um sistema regressivo de tributação concentra renda e riqueza. As isenções de impostos, as restituições e as desonerações para empresas ou indivíduos  acentuam a concentração de renda.

Os créditos fornecidos pelo Estado privilegiam em geral as maiores empresas e, portanto, seus proprietários que são os indivíduos mais ricos da sociedade.

A leniência do Estado para com a evasão de tributos ou com seu não pagamento (por exemplo, pela não criminalização da evasão, pelo parcelamento e perdão das dívidas tributárias) também concentra renda e riqueza. São brasileiros os proprietários de 530 bilhões de dólares depositados em paraísos fiscais.

A concentração de renda e de riqueza em mãos de uma ínfima minoria da população brasileira tem importantes efeitos sobre o sistema democrático e sobre os episódios de corrupção.

Os indivíduos detentores de riqueza e renda tem interesse em preservar os mecanismos de concentração e interesse em que não surjam instrumentos legais (leis ou programas) que desconcentrem riqueza e renda.

Ora, as normas (as leis) que definem a estrutura e o mecanismo de riqueza, propriedade e renda (legislação trabalhista, tributária, monetária, da propriedade rural e urbana, etc.) são elaboradas no Legislativo, eventualmente no Executivo e cada vez mais no Judiciário.

Em um país de grande concentração de riqueza e renda, de elevado grau de urbanização, de grande penetração dos meios de comunicação, de sistema democrático e eleitoral relativamente livre de fraudes, seria natural que a enorme maioria da população (que é pobre ou no máximo remediada) elegesse a maioria dos representantes no Congresso, que deveriam ser como ela pobres e remediados e, portanto, legisladores dispostos a redistribuir a riqueza e a renda ou pelo menos a minorar os mecanismos de concentração.

Não é isto o que ocorre.

A ínfima minoria milionária e bilionária tem, assim, de procurar instrumentos para influir no processo político para evitar esse tipo de legislação e de ação redistributiva no Executivo. Essas, quando ocorrem, são taxadas de comunistas, socialistas, nacionalistas, e hoje em dia de bolivarianas.

O primeiro e mais importante desses instrumentos é o financiamento privado (empresarial) das campanhas eleitorais.

O segundo instrumento é o controle dos Partidos para que estes escolham como seus candidatos indivíduos que sejam favoráveis à sua visão (isto é, daquela minoria) da sociedade, ainda que não sejam eles mesmos, do ponto de vista pessoal, detentores de riqueza e renda elevadas.

O terceiro instrumento é o controle dos meios de comunicação para convencer a população das deficiências do Estado, do caráter corrupto dos candidatos dos Partidos e das políticas populares (isto é, daqueles comprometidos com programas de reforma social que leva à desconcentração de riqueza e renda). 

O quarto instrumento é a campanha permanente dos meios de comunicação de desmoralização da atividade política, do Estado e dos políticos para manter a maioria do povo afastada da política. Uma das formas de manter o povo afastado da política seria a aprovação do voto facultativo como se este fosse apenas um direito e não um dever. 

A campanha pela reforma política deve se concentrar no tema central do financiamento empresarial das campanhas, que é a verdadeira fonte de corrupção e de controle oligárquico, não democrático, da sociedade por aqueles que concentram o poder econômico e controlam os meios de comunicação.

Os representantes das forças conservadoras no Congresso Nacional já se empenham para votar o projeto que consagra o financiamento privado, isto é, empresarial, das campanhas eleitorais.

A consagração legal do financiamento privado consagrará o sistema fundamental de corrupção do processo político que tem como objetivo impedir a desconcentração de riqueza e renda que torna o Brasil um dos países mais injustos do mundo.