quinta-feira, 31 de março de 2011

O golpe de 64 e o direito à verdade

Reproduzo o oportuno e preciso artigo do jornalista Emiliano José, ex-preso político, escritor e Deputado Federal pelo PT da Bahia, velho amigo e companheiro de lutas democráticas. A data de hoje, de triste memória, merece isso.

O 47º aniversário do golpe militar de 31 de março de 1964 é uma boa oportunidade para refletirmos sobre uma grande mancha, uma nódoa moral que mancha a alma brasileira. O golpe militar violentou o Estado de direito, derrubou um presidente constitucional, desrespeitou as liberdades individuais e coletivas e, sobretudo, submeteu o país aos interesses do grande capital nacional e internacional, capital que se acumpliciou inteiramente com o golpe. Os responsáveis pelo golpe militar cometeram um crime de lesa-pátria. E com o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, os militares radicalizaram a ditadura, institucionalizando o terror de Estado, acabando com quaisquer vestígios de legalidade, e atentando, a partir daí de modo cotidiano, contra os direitos humanos.

Alguns historiadores concluíram, numa explicação rasa, simplista, que a anarquia militar deu origem à ditadura e ao terrorismo de Estado. Penso que não. A ditadura militar e o terrorismo de Estado foram resultado de um planejamento na Escola Superior de Guerra (ESG) que reproduziu pensamentos de guerra de escolas norte-americanas, que não admitiam um governo democrático reformista, progressista, porque era essa a natureza do governo Goulart. Todos os generais-presidentes eram foras-da-lei. Cúmplices na derrubada de um governo constitucional, e também na criação de um ordenamento jurídico autoritário e espúrio.

Esses generais-presidentes, por mais de 20 anos, comandaram o martírio imposto aos jovens estudantes, aos operários, a todos os que se opuseram ao regime militar das mais variadas maneiras e adotando as mais diversas formas de luta. Os generais-presidentes são criminosos. Não podemos, a Nação não pode, eximi-los da responsabilidade dos crimes de prisão, tortura, assassinato, desaparecimento de opositores ocorridos dentro das instituições das forças armadas e nas ações chamadas de combate.

Lamentavelmente, temos que dizer que as forças armadas brasileiras, as daquele período histórico, têm as mãos sujas de sangue. Essa gente tem nome e sobrenome. Daí a importância do resgate da verdade. Se ainda estão vivos, torturadores e assassinos precisam ser punidos, e o primeiro passo é o conhecimento da verdade. Não há prescrição para esse tipo de crime. Não pode haver. À luz do direito internacional, do nosso direito e à luz dos direitos humanos.

Esclareço, embora me pareça óbviom, que ao fazer isso ninguém está pretendendo julgar os militares brasileiros de hoje, que se encontram cumprindo suas funções constitucionais. Mais: creio que às Forças Armadas atuais deveria interessar que toda a verdade viesse à tona, que se desse nome aos torturadores publicamente, de modo a separar o joio do trigo, a enterrar de vez aquele período, e a não permitir de modo nenhum que tais Forças Armadas voltassem a se envolver em políticas terroristas, como ocorreu durante a vigência da ditadura militar inaugurada em 1964.

Um padre amigo me citou certa vez um trecho do Evangelho de São João: “queiram a verdade, porque a verdade vos tornará livres”. Ou então o que dizia o notável Gramsci: aos revolucionários só interessa a verdade, nada mais do que a verdade. Simples assim. A verdade sobre o regime militar, mais cedo ou mais tarde, deverá ser exposta porque liberta. Vejo como uma purificação da alma brasileira. Uma catarse necessária, fundamental. Temos de olhar para os monstros que torturaram e mataram sem piedade, reconhecê-los. Ao menos isso.

Direito à verdade. Direito à memória. Temos que reconhecer que lamentavelmente grande parte de nossa juventude de hoje não tem a menor idéia do que aconteceu nos porões da ditadura. É preciso que a sociedade medite sobre o que aconteceu, sobre a covardia que é submeter à tortura prisioneiros de qualquer natureza. É curioso assinalar que nem mesmo a legislação da ditadura, nem mesmo ela, admitia que a tortura fosse admissível. Eles não quiseram passar recibo. Mas, não adianta: a história registra as coisas. Na pele, no corpo, na alma de milhares de brasileiros ficaram gravadas as garras dos assassinos da ditadura. Não é panfletarismo gratuito: é que eram assassinos, e da pior espécie, e além de tudo covardes. A tortura é um ato de covardia, para além de monstruoso.

Do ponto de vista jurídico não há impedimento para o julgamento dessas pessoas, militares e civis. Pelo sistema de direitos humanos sacramentado pela ONU, pela OEA, não há prescrição para crimes deste tipo. Não é objetivo da Comissão da Verdade, sei, até porque impossível, até porque fora de suas atribuições, promover quaisquer espécies de julgamento. Ela quer apenas e tão-somente conhecer, garantir que a sociedade brasileira conheça a verdade. Saiba sua própria história.

Quando o General De Gaulle assumiu o governo provisório, após a libertação da França na Segunda Guerra Mundial, fez uma declaração singular: sua primeira medida seria instituir tribunais regulares para julgar os colaboracionistas, porque a França jamais poderia encarar o futuro com confiança se não liquidasse as contas do passado. Poderíamos acusá-lo de revanchista? Certamente não. Em nosso caso, não liquidamos as contas do passado e isso prolonga a nódoa moral criada pelo terrorismo de Estado.

Não apenas não liquidamos as contas, como o fizeram tantos países latino-americanos, como o Argentina, o Chile, o Uruguai, que viveram ditaduras também. Na Argentina, os carrascos, maiores e menores, amargam prisões, depois de julgamentos regulares, sob um Estado democrático. Jorge Videla está na prisão. Nós, nem ainda conhecemos toda a verdade.

Essa impunidade histórica alimenta um vício secular na política brasileira. O vício de um sentimento de imunidade do poder. No poder, os autoritários, fardados ou não, se julgam inatingíveis, se corrompem, traem os interesses nacionais, entregam as riquezas do país, relativizam atrocidades cometidas, como se os fins justificassem os meios. Creio que estamos mudando. Que no governo Lula, houve prisão de gente de colarinho branco, embora sob protestos de parte de nossa elite. Mas, ainda temos muito que avançar para acabar com quaisquer imunidades ou impunidades. Todos estão ou devem estar submetidos à lei. Ninguém tem o direito de torturar ninguém, e quem o fizer nunca deixará de estar ao alcance da lei.

A mídia anunciou que o Exército Brasileiro retirou da agenda a “comemoração” do 31 de março. Se corresponde aos fatos, ainda há esperança. Só temos a saudar tão sábia decisão. Chega a ser trágico que os novos militares cultuem com ordem unida e desfile público os crimes cometidos pelos generais do passado. Não dá para construir uma verdadeira democracia com esse tipo de tradição. O 31 de março só merece repúdio. Nunca comemoração. Ao fazer isso, creio, se de fato o fizeram, se acabaram com tais celebrações, as Forças Armadas atuais se incorporam definitivamente ao ideário democrático, se adequam aos novos tempos do Estado democrático.

A Comissão da Verdade quer apenas a verdade, o exercío do direito à verdade, à memória. O direito que tem qualquer pai, qualquer mãe de família, qualquer parente de saber o que ocorreu com seus entes queridos, muitos deles desaparecidos, milhares torturados pelos criminosos fardados ou não sob as ordens dos generais-presidentes entre 1964 e 1985. Porta-vozes dos criminosos do passado tentam carimbar a Comissão da Verdade como revanchismo. Ela não tem esse caráter. Ela segue o caminho de todos os países que enfrentaram regimes genocidas, ditaduras terroristas, como foi o nosso caso. Queremos justiça, apenas justiça. Quer resgate de uma dívida do Estado brasileiro, na letra e no espírito da Constituição Federal. Quer o direito coletivo à verdade, um direito das vítimas da ditadura, um direito dos brasileiros.

Aqui, minha saudação aos bravos militantes brasileiros que tombaram na luta contra a ditadura de 31 de março de 1964. Minha saudação aos que lutaram e sobreviveram. E que não querem se esquecer do que houve. E ao manter na memória aqueles tempos não o fazem por qualquer espírito revanchista. Agem assim primeiro porque quem passa pela tortura, pela prisão, e sobrevive, nunca mais se esquece. E segundo, ao não se esquecerem e ao lembrarem publicamente dos crimes da ditadura, advertem as novas gerações que devem prezar muito as liberdades democráticas, valorizar a democracia, firmar a convicção de que ditadura nunca mais.

terça-feira, 29 de março de 2011

José Alencar, um patriota


Rendo aqui minha homenagem ao ex-Vice-Presidente José Alencar, homem bom, brasileiro maiúsculo, um patriota que ajudou Lula a se eleger em 2002 e a governar durante oito anos, mudando a face do Brasil.

De pouco valem as palavras quando se mira uma unanimidade nacional como foi e é José Alencar. A lembrança da sua grata presença entre nós não deixará a alma dos brasileiros. Será sempre uma referência de honestidade, lealdade,  de compromisso com a democracia, a justiça social e a soberania do nosso País.

Tomara que o Brasil seja capaz de produzir homens e mulheres que ao menos se aproximem da estatura desse gigante, pois é dessa gente que precisamos para construir aqui uma grande Nação.

domingo, 27 de março de 2011

As faces e a alma do marxismo

Por Oswaldo Bertolino, publicado no sitio http://www.fmauriciograbois.org.br/

Acaba de vir à luz, pelas mãos da editora Anita Graibaldi e da Fundação Maurício Grabois, a coletânea intitulada ""Marx como pensador" — textos do intelectual alemão Rolf Hecker, que está no Brasil para divulgar a monumental obra de publicação dos trabalhos originais de Karl Marx e Friedrich Engels, conhecida como Mega-2. São oito artigos que discorrem sobre o Marx crítico da economia, o Marx filósofo, o Marx historiador, o Marx jornalista, o Marx político, o Marx das ciências naturais, sobre o “problema Marx-Engels”, sobre a história das edições das obras dos pensadores alemães, sobre os monumentos de Marx na Europa e sobre o que se sabe de Marx.
Na apresentação, o historiador Augusto Buonicore dá uma pitada do que vem em seguida, lembrando as mortes e ressurreições do marxismo. “A cada vez que uma crise assola o sistema — e os povos sentem na carne suas conseqüências nefastas e se rebelam —, a figura de Karl Marx se revigora”, escreveu. E acrescenta: “Afinal, não foi ele quem descobriu os mecanismos ocultos das crises do capitalismo e deu pistas para a sua superação? Contudo, parece que a necessidade de conhecer mais e melhor as obras marxistas não se reduziu, desta vez, às principais vítimas do capital: os trabalhadores.”

Buonicore esclarece que o texto do professor Rolf Hecker que a Fundação Maurício Grabois disponibiliza é resultado de uma conferência realizada em meio às atividades alusivas aos 125 anos da morte de Marx, em 2008. Seu objetivo era “analisar como mudaram nossas representações sobre Marx e sua obra nos últimos 15 anos”. Segundo o historiador, que também é secretário-geral da Fundação Maurício Grabois e presidente do Centro de Documentação e Memória (CDM) dessa instituição, Rolf Hecker é um profundo conhecedor das obras de Marx e Engels, especialmente das virtudes e vicissitudes de suas edições.

Nos textos, Hecker passeia pela história das obras dessas personalidades antológicas, especialmente de Marx. Ele relata um acontecimento que simboliza como poucos a grandeza desse pensador original. Segundo o professor, todos os anos milhares de pessoas visitam o túmulo de Marx no cemitério Highgate, em Londres. Em 11 de novembro de 2007, o jornal Frankfurt Allgemeine Sonntagszitung publicou que “Marx é um grande pensador, uma personalidade da história mundial, e merece respeito”. A “Casa de Karl Marx” em Trier, Alemanha — o único museu especial dedicado a Marx no mundo, e que recebeu em 2010 a visita de 40.233 turistas, entre os quais mais de dez mil provenientes da China —, escreve Hecker, foi reaberta em 9 de junho de 2005.

A alma do marxismo

Mais do que o museu, as obras de Marx são visitadas em todas as partes para se compreender o que se passa atualmente, confirmando as palavras de Engels em seu funeral, segundo as quais o nome e a obra do mais famoso pensador alemão atravessaria os séculos. Seu pensamento enfrentou e venceu diferentes fixações fanáticas. Quando não vencem pelos ataques, contudo, apelam para a indiferença em relação à sua alma — a dialética, na definição de Wladimir Lênin. A dificuldade está em procurar compreender o marxismo com espírito científico, isento de paixões e sem a carga irracional de ódio, herdada em boa parte de preconceitos incutidos por anos de anticomunismo.

Mesmo quando ele não é excluído da categoria de fenômeno social — o marxismo é ensinado até nas universidades norte-americanas —, procuram a todo custo destituí-lo de sua alma. É assim que os espíritos se fecham ao seu conhecimento, possivelmente com medo de a ele se converter. Para compreendê-lo, é preciso compreender a sua essência revolucionária. Trocando em miúdos: para compreender a realidade, é preciso pensar a realidade. Pensar é apreender os fatos pelo pensamento e compreendê-los como processo em contradição — a mola do movimento real das coisas. Logo, se a realidade é dialética e se pensar é apreender a realidade, pensar é apreender dialeticamente os fatos.

Exercício revigorante

O marxismo, independente do que dizem dele os já decrépitos “novos filósofos”, não pode evidentemente ser resumido a um modelo. Os bolcheviques de “têmpera especial” partiram a história em duas, abalaram o mundo, romperam pela primeira vez a estrutura e a lógica do capitalismo e do imperialismo — tomaram o céu de assalto, como dizia o próprio Marx sobre os revolucionários da Comuna de Paris, de 1871 —, mas foram marxistas do seu tempo. O desenvolvimento histórico obriga os marxistas a uma nova perspectiva revolucionária, adequada ao tempo e às condições concretas de cada lugar, de cada realidade.

Nessa constatação está a alma do marxismo, capaz de uma atitude crítica diante de fórmulas tradicionais petrificadas. A conclusão que pode ser extraída é que a sua força não depende dos males elementares do capitalismo. Nem da idéia de um único movimento comunista mundial que, num certo período, atrofiou o pensamento marxista. O marxismo é um método científico. E, nas ciências, a discussão — entre pessoas que sustentam pontos de vista divergentes sobre bases científicas — é o único caminho permanente de progresso. Marx como pensador ensina isso. A leitura dos textos do professor Hecker é o exercício revigorante do qual fala Augusto Buonicore na apresentação do livreto.


sexta-feira, 25 de março de 2011

24 de março de 1976, data macabra


Em 24 de março de 1976 - data macabra - os militares argentinos assaltaram o poder sob a cantilena de sempre dos golpes militares: defender a democracia que estava em perigo, ameaçada por forças do exterior. E, para "defender a democracia", instalaram uma ditadura feroz, alucinadamente genocida, que resolveu enfrentar seus opositores simplesmente eliminando-os.

Como escreveu, em seu blog, Emir Sader: "Não houve Estádio Nacional, como no Chile, mas desaparecimentos e fuzilamentos maciços. Saíam, às quartas e aos sábados, os vôos da morte, com presos, que eram sedados, acompanhados de capelães do Exército e os corpos eram jogados no mar e no Rio da Prata. As vitimas são calculadas em várias de dezenas de milhares".

Não se deve esquecer que todo esse horror, assim como o horror das demais ditaduras militares que grassavam pelo continente, concorrendo entre si em truculência, contava com apoio explícito dos Estados Unidos, esse mesmo que hoje diz defender a democracia no Oriente Médio e lidera a invasão da Líbia para "proteger" a vida de civis.


Reproduzo, a seguir, comovente homenagem aos presos políticos argentinos por Hugo Soriani, Gerente-Geral do jornal argentino Página/12, ele próprio ex-preso político.

Não nomearei a ninguém porque estas linhas são para todos. Alguns já não estão conosco porque morreram nestes últimos anos, e outros morreram na prisão, fuzilados pela repressão ou pela pena.


Vou lembrar os presos políticos da ditadura militar.


Eram mais de dez mil pessoas que tinham sido detidas antes do nefasto 24 de março. Logo já não houve mais presos políticos, somente desaparecidos.

Nestas prisões conviveram nove, dez, doze anos, rapazes de vinte anos, pouco mais pouco menos, com homens de cinquenta, às vezes de sessenta, pelos quais os mais jovens sentiam devoção e respeito já que vinham de outras lutas, sobreviventes de um país assolado pelas ditaduras.


Eles tinham lutado contra a de Lanusse, e alguns contra a de Onganía, e contavam experiências que os mais jovens escutavam com avidez, curiosidade e impaciência.

Não nomearei a ninguém porque foram todos os que, hora após hora, dia após dia, ano após ano, resistiram em conjunto à política de extermínio que se instrumentou para destruí-los. Os que inventaram um código para se comunicar no silêncio, os que violaram todas e cada uma das regras e proibições que os guardas impunham diariamente. Os que com valentia, engenho e audácia inventaram os truques necessários para sobreviver sem perder suas convicções.


Os que não assinaram nenhuma nota de arrependimento, apesar das represálias.


Os que na obscuridade dos calabouços de Rawson foram golpeados até desmaiar e reanimados com água gelada em madrugadas com quinze graus abaixo de zero, para logo deixa-los nus e repetir a história no outro dia, no outro e no outro.


Os que denunciaram suas torturas ao monsenhor Tortolo, no cárcere de La Plata, e escutaram como resposta que “Videla é ouro em pó” dos lábios do monsenhor. Os que escreveram minúsculas notas em finíssimo papel de cigarros para comunicar ao exterior o que acontecia atrás dos muros.


Os que, em dias de fome, compartilhavam a comida escassa.

Os que golpearam os jarros de metal contra as grades festejando o triunfo da Revolução Sandinista na Nicarágua, em julho de 1979, apesar dos golpes e gritos dos carcereiros, que tratavam de impedi-los.


Os que choraram a morte de John Lennon, em dezembro de 1980, porque junto a ele imaginaram que não eram os únicos sonhadores.


Os que, no cárcere de Magdalena, conheceram em pessoa a ferocidade do general Bussi, antes que fosse o célebre carniceiro de Tucumán.

Os que foram reféns em Córdoba durante o mundial, sob ameaça de fuzilamento, enquanto os genocidas se abraçavam com Menotti.

Os que foram retirados do pavilhão da morte na prisão de La Plata e, sabendo que iam ser fuzilados, se despediram de seus companheiros cantando suas consignas.


Os que sobreviveram nesse pavilhão e denunciaram o que estava acontecendo, pondo em risco suas vidas.


Os que no pátio da prisão de Córdoba viram morrer companheiros e não baixaram o olhar, como queriam os policiais para humilhá-los.


As mulheres presas no cárcere de Devoto, que durante anos resistiram a práticas vexatórias. Essas mesmas mulheres que, inteiras e dignas, já livres, escreveram um livro imprescindível: Nós, presas políticas.


Os que na prisão de Caseros viveram amontoados em celas miseráveis, sem saber quando era noite ou quando era dia.


Os que não perderam o humor, sobre tudo o humor negro, e riram de suas próprias desgraças.


Os que, em julho de 1983, na prisão de Rawson, com mais coragem que inteligência, decidiram acompanhar o jejum que Pérez Esquivel realizava em Buenos Aires, sem que ninguém, mas ninguém soubesse o que estavam fazendo. E continuaram o jejum dez dias mais do que ele porque, devido ao isolamento a que estavam submetidos, não souberam que o Prêmio Nobel já havia suspendido a greve ao conseguir seus objetivos.


Os que escreviam más poesias, mas foram poetas.


Os que sabiam de memória o Gênesis ou o Êxodo, porque a Bíblia foi a única leitura permitida. E às vezes nem isso.


Os que cantaram, desenharam, sonharam e atuaram, inventando a maneira de se esquivar da morte ou da loucura.


Os que em todas as prisões, em todas, só tiveram durante anos uma parede branca a dois metros de distância como único horizonte.


Os que durante nove, dez, doze anos não fizeram amor nem tomaram um copo de vinho ou uma taça de café.


Os que não viram crescer seus filhos.


Os que saíram com a roupa do corpo e sem ter uma casa para onde ir ou um trabalho para sobreviver.


Os que foram recebidos com desconfiança, porque eram sobreviventes.


Os que sentiam toda a culpa do mundo por esse mesmo motivo.


Para todos eles, presos políticos da ditadura, que hoje, há trinta e cinco anos do golpe militar, são testemunhas dos julgamentos dos genocidas, militantes em seus bairros, representantes em seus trabalhos, funcionários comprometidos e trabalhadores da política em seu sentido mais nobre, qualquer que seja o lugar para onde a vida os levou. Para eles, estas linhas de lembrança e de homenagem.

quarta-feira, 23 de março de 2011

ONU: dois pesos, duas medidas

Por Larissa Ramina, Doutora em Direito Internacional pela USP e Professora da UniBrasil e da UniCuritiba, no sítio Carta Maior.

A Líbia foi o primeiro país em toda a história do Conselho de Direitos Humanos da ONU a ser suspenso de suas atividades por violação dos direitos humanos. Seria a Líbia o primeiro Estado a ocupar uma cadeira no Conselho a violar aqueles direitos? O que dizer das prisões norte-americanas em Guantânamo e da expulsão dos ciganos na França, para citar só dois exemplos?

O Conselho de Segurança da ONU adotou, em 17 de março, uma resolução autorizando ataques aéreos contra as forças de Muamar Khadafi. A resolução foi adotada com dez votos a favor e cinco abstenções. Abstiveram-se todos os países do BRIC – Brasil, Rússia, Índia, China, e mais a Alemanha. Rússia e China, portanto, não fizeram uso de seu direito de veto. Os BRIC articularam-se com base na condenação do uso da força nas relações internacionais e na busca do diálogo.

Ao contrário da expectativa de alguns círculos, a abstenção brasileira significou, no mínimo, que não haverá uma ruptura total com os rumos da política externa antecessora, nem mesmo diante da visita de Obama ao Brasil. A liderança de Dilma Roussef não penderá para o alinhamento automático com os EUA. Como bem salientou Luiz Aberto Moniz Bandeira, a defesa dos interesses nacionais brasileiros não significa, absolutamente, antiamericanismo. A opção brasileira de se abster demonstra maturidade e, sobretudo, coerência.

A resolução contra a Líbia só pôde ser adotada quando os EUA tornaram possível seu não envolvimento direito, delegando a execução das operações militares à França e ao Reino Unido, com o apoio da Liga Árabe, e com base em uma resolução do Conselho de Segurança, precavendo-se assim de reviver a situação ocorrida no Iraque.

A Líbia integrará, portanto, a lista de antigos aliados ocidentais que se tornaram alvos militares por “violação dos direitos humanos”, junto com o Panamá de Manuel Noriega, o Iraque de Saddam Husseim e o Afeganistão do Talibã. De “cachorro louco”, Khadafi passou a amigo do Ocidente quando reconheceu, em 2003, sua responsabilidade no atentado contra o avião da PanAm que explodiu sobre a cidade de Lockerbie, em 1988, deixando 270 mortos, e desistiu de seu projeto de desenvolver armas nucleares. Em 2006, os EUA anunciaram a retirada da Líbia da lista de países terroristas e puseram fim ao seu isolamento internacional, viabilizando contratos milionários na área energética, inclusive com outros importantes países membros da OTAN.

Um dos maiores crimes contra os direitos humanos do século XX, entretanto, ocorreu sob os olhos indiferentes da comunidade internacional, sem que a ONU adotasse quaisquer medidas. Em 1994 a Ruanda, país sem qualquer importância estratégica cravado no coração da África, foi palco de um genocídio perpetrado durante 100 dias por radicais hutus contra tutsis e hutus moderados, resultando na morte de cerca de um milhão de pessoas. Os principais acusados pela indiferença são os mesmos que aprovaram a resolução do Conselho de Segurança contra a Líbia, ou seja, EUA, França e Grã-Bretanha, além da Bélgica.

O Bahrein, por sua vez, está sendo palco dos mais graves protestos da maioria xiita contra a elite sunita desde a década de noventa, que pede o fim da monarquia e a garantia das liberdades democráticas. Nesse caso, não se aventou a possibilidade de discutir a situação no âmbito das ONU, apesar da ocupação do país por tropas da vizinha Árabia Saudita e dos Emirados Árabes. O detalhe que faz a diferença, é que o microestado abriga a V Frota dos EUA responsável por vigiar o petróleo no Golfo Pérsico. A situação no Iêmen, da mesma forma, não mereceu atenção ocidental. A política externa de Barack Obama, portanto, coincide na essência com aquela de George Bush.

Coincidência ou não, a conduta da ONU também difere diante de situações similares, e a lei internacional é aplicada com mais ou menos rigor de acordo com a conveniência. Dois pesos, duas medidas.

terça-feira, 22 de março de 2011

Foi como se tirassem os sapatos

Em sua edição desta terça-feira, 22, a Folha de S. Paulo traz matéria a respeito da revista a que ministros brasileiros foram submetidos por agentes secretos norte-americanos no evento com o Presidente Barack Obama, organizado pela Confederação Nacional da Indústria.

Revista de americanos foi agressiva, diz Mercadante, é o título da nota.

Relata a FSP:

A revista consistiu em uso de bastão e portal detector de metais. Os ministros ainda teriam sido proibidos de usar os carros oficiais. Eles foram escoltados por agentes americanos em um ônibus até o local e revistados na entrada.

Ministros reclamaram, entre eles Guido Mantega (Fazenda), Fernando Pimentel (Desenvolvimento, Indústria e Comércio), Aloizio Mercadante (Ciência e Tecnologia), Alexandre Tombini (Banco Central) e Edison Lobão (Minas e Energia).

Prossegue a FSP:

"Acho que foi um erro transferir naquele evento da CNI a parte de segurança para a equipe americana", disse Mercadante. "Foi uma intervenção muito agressiva, autoritária, assisti ali a episódios inaceitáveis", declarou.


Ele disse ter presenciado um segurança americano destruir com um soco uma maçã que estava na bolsa de uma mulher.


Um dos ministros contou que o esquema fez com que se sentissem como "colegiais" ou suspeitos tentando entrar nos EUA. Após a revista, eles resolveram ir embora.


O Ministério da Fazenda afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que Mantega se sentiu incomodado não apenas pela revista em si, mas porque ele e os colegas já haviam passado por segurança antes, no almoço com Obama no Itamaraty.

Bem, então foram duas revistas: no Itamaraty e no evento da CNI. Segundo a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, o procedimento foi padrão, comum “em todas as visitas em evento organizado pela Casa Branca”.

Certo. Então quando a Presidente Dilma visitar os Estados Unidos e a Embaixada brasileira organizar um evento, a segurança (inclusive com revista em autoridades norte-americanas) será feita pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e pela Polícia Federal. Vamos ver.

A verdade, a meu ver, é que essas revistas violaram a soberania brasileira. Agentes estrangeiros revistando ministros brasileiros é algo inconcebível em qualquer lugar do mundo, muito mais em território nacional.

No ano passado, o então Presidente Lula lembrou o episódio ocorrido nos Estados Unidos, em janeiro de 2002, quando o então chanceler Celso Lafer foi obrigado a tirar o sapato três vezes por seguranças de aeroportos ao longo da viagem que fez ao país. Lula garantiu: "Ministro meu que tirar o sapato deixará de ser ministro. Se tiver que tirar o sapato, volte para o Brasil, porque não exigimos que ninguém tire o sapato aqui", disse.

Deixar-se revistar por seguranças norte-americanos, apesar de, em seguida terem se retirado, foi da parte dos ministros quase como tirar os sapatos nos aeroportos, como se Celso Lafer reclamasse e voltasse pra o Brasil, mas depois de tirar os sapatos. Um gesto, digamos, de meia dignidade. Deviam, os nossos ministros de hoje, protestar à altura e não permitir a revista. Nenhum brasileiro decente os condenaria por isso.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Uma visita marcada por mais uma guerra

Por Emir Sader, em seu blog

O senador Suplicy me ligou dizendo que não estava de acordo com uma mensagem que publiquei no twitter convocadando os cariocas a um domingo de praia ao invés de ir ao comício que o Obama deveria fazer na Cinelândia. Ele dizia que o Obama era o continuador dos sonhos do Martin Luther King. E se, de repente, depois de conversar com a Dilma, ele anunciasse a fim do bloqueio a Cuba no comício?

O Suplicy me perdoará se não for absolutamente textual – se ele quiser precisar seus argumentos, pode escrever que a Carta Maior publicará integralmente seu artigo. Mas estou seguro que esses eram os dois argumentos que ele me expos e eu, democraticamente, contra argumentei.

Disse que é verdade que Obama representou – ou, para alguns, anda representa – um polo progressista dentro dos EUA, contra a direita e a ultradireita. Mas mesmo lá dentro, apesar dos seus discursos contra os bancos, como causadores da crise, ele salvou os bancos, acreditando que eles salvariam os EUA, mas os bancos se salvaram a si mesmos e deixaram o país na recessão, com a elevada taxa de desemprego que ainda tem.

Mas, principalmente fora dos EUA – elemento inseparável para uma potência imperial -, sua politica continua exatamente a mesma do Bush, ele não cumpriu nenhuma das promessas que fez: nem terminou com o bloqueio a Cuba, nem saiu do Iraque, e agora promove uma nova guerra, contra a Líbia.

Uma vez realizada a visita, creio que a posição que defendi se justifica ainda mais. A marca da visita não está dada por nenhum pronunciamento ou acordo assinado aqui, mas pelo cenário do bombardeio da Líbia, com a sempre falsa justificativa de que fazem para defender os civis do país. Mesmo no plano do discurso, dos acordos e do seu itinerário, a visita foi decepcionante. Nos discursos, ele fez o mínimo possível de concessões: depois de ter apoiado expressamente a Índia para ingressar no Conselho de Segurança da ONU, fez apenas uma menção simpática ao Brasil – “apreço” -, longe do compromisso com o pais asiático. Os EUA não cumpriram com sua parte nos novos acordos comerciais e Obama tenta justificar a postura com a crise econômica, que dificultaria abrir o mercado dos EUA. Não havia nenhum sintoma de que anunciaria o fim do bloqueio a Cuba ou qualquer outra medida progressista, como seus pronunciamentos confirmaram.

Obama não trouxe o Ministro de Energia, como estava planejado, diminuindo as possibilidades de acordos nessa área. Rejeitou o convite para um jantar reservado com Dilma em Brasília, onde ficou apenas algumas horas, partindo rapidamente para o Rio. Aqui, fez programas familiares no jantar, na visita ao Corcovado e a Cidade de Deus. A suspensão do comício na Candelária – que tranquilizou o governo, que não via com bons olhos a operação – levou a um discurso no Teatro Municipal, onde houve mais seguranças, policiais e escoltas do que público.

Sua passagem – cujo aspecto mais importante foi o de que, pela primeira vez, um presidente empossado no Brasil é visitado por um presidente norteamericano, ao invés de ir visitá-lo – deixa uma imagem frágil, de pouca transcendência, de mais um presidente dos EUA que não somente não deixa um cenário de guerra – o Iraque – como prometido, como leva seu país, no momento da sua viagem, a mais uma.

domingo, 20 de março de 2011

A Líbia e o DJ do Império

Reproduzo aqui artigo assinado pelo sociólogo Gilson Caroni Filho, originalmente veiculado no sítio Carta Maior.

Ao começar a ofensiva militar contra a Líbia, as potências mundiais referendaram a nova estratégia estadunidense de manutenção de hegemonia global. Hoje é improvável que a Casa Branca queira se envolver diretamente em novo confronto militar. Talvez nem precise. Pouco a pouco, os Estados Unidos vêm conseguindo o aumento da cooperação internacional para alcançar seus objetivos geopolíticos. Sem os riscos de isolamento que marcaram a agressão imperialista ao Iraque e Afeganistão, a ação bélica no país árabe é amparada por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU. Os sonhos de um mundo multipolar sofrem um desvio histórico de tal monta que não é exagero atentarmos para uma perspectiva internacional de extrema gravidade.

Nos anos 1920, os norte-americanos dançavam o “charleston” e diziam que eram "os anos loucos", enquanto nas ruas de Chicago, gangsteres italianos e irlandeses se enfrentavam à bala. Na Líbia, o guerrilheiro Omar al-Muktar, o "leão do deserto", lutava contra o fascismo italiano e, na Nicarágua, Augusto Sandino, o "general dos homens livres", combatia os marines do capitão Frederick Hatsfield. Muktar foi enforcado em 1931 e Sandino fuzilado em 1934. O “terrorismo” estava sendo contido.

Mais de meio século depois, Líbia e Nicarágua foram associadas por algo mais do que aquelas gestas antiimperialistas, quase simultâneas. O artífice dessa ligação foi o então presidente Ronald Reagan para quem Muamar Kadafi era o "cão raivoso" do Oriente Médio e o comandante Daniel Ortega "um capanga com os olhos de figurinista".

Em 14 de abril de 1986 foi realizado um ataque norte-americano a Trípoli, Bengazi e a outras três cidades por 18 bombardeios que levantaram vôo de bases na Grã-Bretanha, e 15 caças estacionados em porta-aviões pertencentes à 6ª Frota dos Estados Unidos no mar Mediterrâneo. A operação foi justificada como uma retaliação a um atentado em 5 de abril, em uma discoteca alemã, que teria matado 4 pessoas, deixando um saldo de 200 feridos. Na época, como sempre, Washington alegou possuir provas “irrefutáveis" da participação de terroristas líbios no atentado, ainda que não tivesse apresentado nenhuma.

Simultaneamente, a CIA, com o apoio da imprensa centro-americana, difundia a existência de comandos árabes realizando ações terroristas em território hondurenho, a partir de bases cedidas pelo governo sandinista. Como destacou o sociólogo Roberto Bardini, “ao tomarem conhecimento da alarmista campanha da mídia e da adoção de fortes e ostensivas medidas de segurança em Honduras, alguns observadores calcularam que tudo não passava de uma operação psicológica que teria quatro objetivos: justificar represálias militares contra a Líbia, demonstrar que a Nicarágua emprestava seu território para exportar o terrorismo, comprovar a existência de uma conexão Trípoli-Manágua. e, principalmente, conseguir que o Congresso aprovasse a destinação de US$ 100 milhões aos "contras".”

O que Reagan conseguiu com a agressão à Líbia? Um isolamento internacional sem precedentes. Ficou reduzido ao apoio da então primeira-ministra inglesa, Margaret Thatcher, e do governo israelense. Desde a guerra do Vietnã jamais se tinha presenciado uma onda tão forte de hostilidade aos Estados Unidos. Definitivamente, o pop dos anos 80 não tinha o mesmo poder de encantamento do charleston.

Passadas duas décadas, e tendo vivenciado o que entrou para a história como Doutrina Bush, uma lição não pode ser esquecida pelas forças progressistas. Ainda mais agora, quando, a pretexto de “conter a barbárie de um ditador”, EUA, França e Inglaterra lançam mísseis na Líbia: o imperialismo encurta tempos e espaços.

O Império é criterioso quando se trata de resgatar o que lhe parece ser seu fundo de quintal. A tentativa de modificar a nova ordem política da América Latina é o que move os passos de Obama na região. Transformar assimetrias em impossibilidades e mudar o perfil da política externa brasileira são os imperativos da vez.

Ao declarar que "nosso consenso foi forte e nossa decisão é clara. O povo da Líbia precisa ser protegido e, na ausência de um fim imediato à violência contra civis, nossa coalizão está preparada para agir e agir com urgência", o presidente dos Estados Unidos deixa evidente que, em nome do “hegemon”, está pronto para misturar sem dó nem piedade o hit radiofônico “Closer”, do “rapper Ne-yo”, com um “mash-up” tribal da Madonna para "Miles away". Espera-se que a pista, quase sempre lotada de ingênuos ou servis, repila com veemência os apelos do "DJ" do império.

Lula acertou na mosca. Não é muito difícil adivinhar quem veio para o almoço.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Israel na encruzilhada

Reproduzo interessante artigo de Reginaldo Nasser, Professor de Relações Internacionais da PUC (SP) e do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP), veiculado pelo sítio Carta Maior

Tal como seus antecessores, Binyamin Netanyahu sempre ponderou que Israel não poderia estabelecer acordos diplomáticos confiáveis com os Estados Árabes a não ser que estes passassem por um efetivo processo de democratização. No entanto, desde o primeiro momento em que a revolução democrática no mundo árabe emitiu seus primeiros sinais na Praça Tahrir, no Cairo, o mesmo Netanyahu usou todos os esforços diplomáticos para manter Mubarak no poder, alegando que sua queda ocasionaria conseqüências desastrosas para toda a região. A democracia que os líderes israelenses sempre apregoaram aos seus vizinhos é agora vista como uma séria ameaça. O silêncio dos lideres Palestinos não foi menos revelador. A Autoridade Palestina, do presidente Mahmoud Abbas, perdeu o seu principal apoiador, Mubarak, em sua luta política contra o Hamas.

Apesar das nações com os quais Israel deveria fazer a paz (Líbano, Síria e Palestina) não estarem sendo atingidas pelas revoluções que hoje varrem a região, a situação agora é diferente, pois o tratado de paz com o Egito é crucial para seus cálculos de segurança. Provavelmente os novos governos formados no Egito e em outros países, vão refletir o descontentamento interno e, mais cedo ou mais tarde, promoverão ajustes nas questões de política externa. Acostumados a olhar apenas para os problemas de Israel em suas relações exteriores (Palestinos, Irã, Hezbolah ou Síria), a opinião pública internacional deverá observar com atenção, a partir de agora, as movimentações que poderão acontecer na sociedade civil israelense e que definirão, em grande medida, a orientação que o Estado deverá adotar nos próximos anos.

Alon Ben-Meir alerta para o fato de que, no mesmo momento em que o mundo árabe se une em um amplo movimento para a democracia, em Israel as instituições democráticas estão em crise. Enquanto os árabes cobram responsabilidade de seus líderes, os líderes de Israel estão, frequentemente, enfrentando investigações e acusações de corrupção. Os manifestantes invadiram as praças das grandes cidades árabes, mas a Praça Rabin, em Tel Aviv, permanece silenciosa. Onde estão os que exigem mudanças que tragam a paz e a prosperidade para todos os israelenses? pergunta Ben-Meir (Israel, Where Are You? Jerusalem Post, 25/02/11. ver também do mesmo autor And if Not Now, When? , The Huffington Post.com, 7/03/2011)

O fato é que a tão alardeada democracia israelense vaza água por todos os lados. O poderoso movimento dos colonos está em franca expansão, ocupando terras palestinas e construindo cidades. Segundo a organização israelense de direitos humanos B’tselem, são 500.000 colonos (cerca de 130.000 são militantes armados) que controlam 42% do território da Cisjordânia.

A nova imigração russa tem sido fator fundamental nas eleições. Em 2009, a grande maioria dos russos que imigraram para Israel, depois de 1989, votaram no partido da ultra-direita, Yisrael Beitenu (Israel é o Nosso Lar) liderado pelo atual ministro de relações Exteriores, Lieberman, que sempre faz questão de dizer que nunca existirá um Estado Palestino. Os árabes-israelenses são uma comunidade marginalizada nas estruturas políticas, econômicas e educacionais de Israel. Formam 20% da população, mas contribuem com apenas 8% do PIB e 60% de seus membros vivem abaixo da linha da pobreza.

Oficiais israelenses e unidades de combate estão ficando cada vez mais ideológicos e religiosos. Em 1990, 2,5% dos oficiais de infantaria eram religiosos. Esse número saltou, em 2007, para 31,0%. Pesquisa conduzida pelo instituto israelense Maagar Mochot indicou que quase 50% dos estudantes do ensino médio de Israel não acreditam que os árabes devam ter os mesmos direitos que os judeus do Estado de Israel.

No que se referem à economia israelense os dados não são tão animadores, apesar do crescimento de 5,4% em 2010. De acordo com o mais recente relatório do Instituto Nacional do Seguro Social, 23% da população vivem abaixo da linha da pobreza. Em 1988, a classe média representava 33% da população de Israel. Em 2009 caiu para 26,6% e Israel já é considerado um dos paises mais desiguais do mundo.

Em contundente artigo escrito no Haaretz (When did it become illegal to be a Leftist in Israel? 06/01/2011) Gideon Levy denuncia que “não é mais legítimo ser de esquerda em Israel”. O Knesset ( parlamento israelense) resolveu criar uma comissão de inquérito sobre as atividades dos grupos de esquerda sob a acusação de “ações de deslegitimação” contra o Estado de Israel". Fazer campanha pelos direitos humanos, se opor à ocupação ou investigar crimes de guerra tornou-se ilegítimo.

Mas, é justamente em momentos de instabilidade e incertezas como esse que o governo de Israel precisará do apoio da comunidade internacional e de seus cidadãos. Entretanto, Netanyahu prefere virar as costas para essa nova ordem regional em formação. E se a turbulência chegar aos territórios palestinos, qual será a resposta de Israel? Mesmo com todas as limitações e obstáculos que apontamos acima, Israel será obrigado a passar por mudanças profundas sob pena de ficar ainda mais isolado devido às campanhas internacionais. Os atuais governantes não terão mais a desenvoltura diplomática anterior quando era possível fazer acordos diplomáticos com os ditadores árabes corruptos.

Gideon Levy advertiu apropriadamente que se os lideres políticos israelenses não mudarem sua forma de agir levando em consideração a complexidade de sua sociedade “eles vão acordar um dia, seja em 10 ou 20 anos, como os líderes da Líbia, Egito e Tunísia, no meio de um pesadelo”. Resta acreditar e torcer para que a rua judaica dê seu recado no devido momento.

quarta-feira, 9 de março de 2011

A intervenção imperialista na Líbia é inaceitável

José Reinaldo Carvalho*

Com o passar dos dias, algumas mentiras vieram à tona. O que se tentou apresentar como “revolução” – a partir de uma legítima manifestação popular por democracia e direitos sociais reprimida pelo governo líbio, em mais uma de muitas atitudes condenáveis do regime de Kadafi – afigurou-se de fato como uma contrarrevolução.

Num curto lapso de tempo, as manifestações pacíficas deram lugar a enfrentamentos armados entre forças leais a Kadafi e uma assim chamada oposição, mescla de grupelhos arrivistas, monarquistas e facções dissidentes do regime, com o aval das potências imperialistas – EUA e União Europeia - e o histérico apoio propagandístico da mídia.

No Brasil, os principais jornais impressos e os noticiários de televisão fazem apelos constantes à “rebelião”, “insurreição” e, com a ajuda de uns poucos trotsquistas, até à “revolução”.

São espécies de edições pioradas de Catão, aquele político e militar que, a cada sessão do Senado Romano, pronunciava a frase que ficou célebre como a “Delenda Cartago”: “Cartago tem que ser destruída”, bordão surrado do império, para liquidar o povo cartaginês, que habitava o território onde se situa a atual Tunísia, povo que teimava em ser independente e foi o solo onde nasceu um dos maiores gênios militares da Antiguidade, Aníbal, cujas tropas infernizaram as legiões romanas. Agora a “delenda” diz: “A Líbia tem que ser destruída”.

Tem sido assim a saga dos imperialistas no mundo contemporâneo – enfrentar uma, duas ou mais “Cartagos” por década, o que faz através de sanções, golpes, bloqueios e ataques brutais, com milhões de mortos. No início dos anos 1990, sob Bush , pai, era o Iraque o principal alvo do império. O “democrata” Clinton deu prosseguimento à campanha para estrangular o regime de Saddam Hussein, o que se consumou em 2003 com a segunda guerra do Iraque, sob o comando de George W. Bush.

As táticas políticas e militares não se diferenciavam das que propõem agora: sanções na ONU, embargos de diversos tipos, exclusão aérea. Os pretextos eram os mesmos: deter a crise humanitária, fazer respeitar os direitos humanos, punir um ditador sanguinário. Os meios, os de sempre: propaganda maciça através dos veículos de comunicação, uníssonos quando se trata de demonizar um adversário do império ou alguém descartável, tergiversar, mentir. A desfaçatez é tamanha que o fazem encobrindo ou perdoando os crimes do império.

Depois tivemos a Iugoslávia, país dilacerado por guerras fratricidas entre as nações que a compunham, incitadas de fora, e finalmente golpeado no coração, quando o imperialismo norte-americano e a União Europeia fizeram a razia dos bombardeios sobre Belgrado em 1999.

A primeira década do novo século conheceu uma “Cartago” bem mais próxima de nós: a Venezuela de Hugo Chávez, tantas vezes no alvo de intentonas golpistas, ameaças de invasão e armadilhas visando ao magnicídio. Já conhecemos esse roteiro macabro. Saddam e Milosevic, como se sabe, foram assassinados.

Este ano assinala a passagem do cinquentenário da tentativa mais séria do imperialismo norte-americano, mancomunado com a contrarrevolução interna, de atacar seu mais incômodo alvo, a Revolução Cubana, a poucas milhas de sua fronteira. Nestas cinco décadas, sucessivos presidentes dos EUA tiveram a ilusão, seguida de decepção, de invadir a ilha e matar seu principal líder, Fidel Castro.

Voltando aos acontecimentos no norte da África, a situação se tornou mais complexa nos últimos dias porque, diferentemente do momento em que a crise se iniciou, quando se anunciava a queda iminente de Kadafi, o fato é que este se encontra em plena ofensiva contra os rebeldes e, se não retomou plenamente o controle da situação, já deu sobejas demonstrações de que não cairá tão facilmente, a não ser com a intervenção estrangeira armada, bombardeios maciços e ocupação territorial.

Conclusão óbvia dos imperialistas: invadir a Líbia. A complicação é que os Estados Unidos não podem fazer isso sozinhos. Precisam desesperadamente do aval e da participação direta da “comunidade internacional”. Os entendimentos estão a pleno vapor. A Otan, de prontidão. Falta o aval da ONU para dar ares de ação “multilateral”.

Atenção. Em muitas chancelarias elaboram-se argumentos “técnicos” para a eventualidade da intervenção estrangeira: “se a ONU autorizar apoiamos a intervenção", dizem essas chancelarias. Não será uma operação fácil para a diplomacia norte-americana, conduzida pela Sra. Clinton, que nada fica a dever em truculência à sua antecessora, obter a unanimidade no Conselho de Segurança. Mas, como há precedentes (primeira guerra do Iraque), é preciso estar em guarda. Em 1999, na Iugoslávia, a ONU não foi acionada, mas como os bombardeios foram executados pela Otan, o imperialismo estadunidense e seus aliados euro-atlânticos exibiram seus crimes de lesa-humanidade como ação coletiva. A secretária de Estado norte-americana da época alcunhou sua política externa como “multilateralismo assertivo”.

Porém, resoluções baseadas em pressões, chantagens, negociações secretas entre interesses escusos, nunca serão a expressão legítima de uma ordem pluripolar praticando o multilateralismo, mas o resultado da instrumentalização dos organismos internacionais. Não pode haver ordem multipolar sem o decidido combate ao imperialismo.

Sejam quais forem os argumentos e a cobertura jurídica e diplomática, a intervenção imperialista na Líbia é inaceitável.

*Secretário Nacional de Comunicação do PCdoB e editor do portal Vermelho

terça-feira, 8 de março de 2011

A democracia e a demonização da política

Reproduzo artigo assinado pelo Governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, e publicado no jornal Folha de S. Paulo, em sua edição de hoje, 8 de março.

A generalização dos vícios dos políticos e da política como, em certa medida, é exercida no Brasil, alimenta uma campanha que, no fundo, busca desqualificar a política como instrumento mediador da vida social, substituindo-o pela economia. Em outras palavras, substituir a democracia pela ditadura do capital - e aqui me detenho, particularmente, no capital financeiro, rentista, parasitário.

O artigo de Tarso Genro alerta para tal risco, embora reconheça a necessidade de se atentar para os novos modos de organização e articulação social do mundo contemporâneo.


Novos sujeitos políticos estão surgindo no interior de um processo de desconstituição da política, que ocorre em escala mundial, após o fracasso das receitas neoliberais para a reforma do Estado.

Esses novos sujeitos florescem fora dos partidos, tanto nos regimes democráticos como nos países autoritários. Quem substitui os partidos, hoje, são as redes sociais, as organizações de defesa do direito das mulheres contra Berlusconi na Itália, os movimentos populares de jovens no Egito, os "banlieues" nas periferias de Paris.

Todos movimentos em rede, que não pedem licença aos partidos ou aos sindicatos. São designados pela mídia, equivocadamente, como "revoluções", mas sem ideologia unitária. O que pedem são reformas, reconhecimento, oportunidades de trabalho, democracia e participação. São movimentos relativamente espontâneos, não contra a política, mas por outra política.

Todo o espontaneísmo é sadio quando se desdobra, em algum momento, em organização consciente.

Torna-se perigoso e contraproducente, em termos democráticos, quando permanece só fluindo, sem substituir o "velho" por nova ordem: a desesperança, nesse caso, pode redundar em salvacionismo ditatorial reciclado, gerando situação inclusive pior que a anterior.

É visível que existe, em grande parte da mídia, também uma campanha contra a política e os políticos, o que, no fundo, é, independentemente do objetivo de alguns jornalistas, também uma campanha contra a democracia.

Ela generaliza o desprezo aos políticos e ao Estado, principalmente àqueles que ainda preservam traços de defesa do antigo Estado de bem-estar. São sempre os partidos políticos, porém, os legatários que reorganizam a sociedade, seja para mais coesão e mais igualdade, seja para mais hierarquia, diferenças sociais e autoritarismo.

É verdade que poucos partidos têm compreendido a profundidade desses movimentos, permanecendo incapazes de apresentar alternativas novas. A maioria, na defesa de seus programas de governo, cinge-se a doses maiores ou menores de "liberalismo" ou "keynesianismo".

Estão desatentos ao fato de que as relações culturais, científicas e econômicas globais mudaram tudo. E que hoje é preciso propor novas formas de organização do Estado, novos tipos de políticas públicas e também organizar um novo sistema de defesa da moral pública.

Mas "representação" e eleições, mal ou bem, sempre constituíram formas de resistência contra o domínio, sem limites, dos manipuladores do capital financeiro especulativo que controlam a vida pública das nações. Eleições e representação constituíram, sempre, "problemas" para os mentores das reformas neoliberais, que agora são os herdeiros políticos do seu fracasso.

O domínio da ideologia neoliberal, além de ter conseguido sua hegemonia a partir da ideia do "caminho único", agora requer conclusões únicas sobre os efeitos da crise, para diluir as responsabilidades de quem a gerou. Desmoralizar a política, partidos e políticos ajuda a desmoralizar as críticas ao fracasso do seu modelo de sociedade.

Por isso, as frequentes campanhas genéricas contra o Estado e contra os políticos em geral têm sido duras. São campanhas não contra o Estado ausente, que dispensa políticas sociais. Nem contra os políticos corruptos, em especial. Mas uma campanha abrangente contra o Estado e contra a política.

As lições do Oriente e também da Europa servem para todos nós que, imbuídos do "desenvolvimentismo econômico e social", defendemos que o Estado deve ser forte por ser transparente e acessível à participação popular. Jamais deve ser "fraco", para ser obrigado a aplicar as receitas da redução impiedosa dos gastos sociais. E, depois, eleger a caridade privada como meio de compensar desigualdades brutais que o neoliberalismo nos legou.

sábado, 5 de março de 2011

A Líbia e o protagonismo do Itamaraty

Não é de hoje que percebo uma certa timidez do Brasil diante da crise no mundo árabe. A diplomacia brasileira tem sido passiva, acanhada, restrita a vazias notinhas oficiais. Para quem se habituou ao intenso protagonismo internacional do Governo Lula, o que se vê hoje é francamente regressivo.

Em artigo que reproduzo abaixo, o jornalista Beto Almeida, da Telesur, examina a situação da Líbia e a posição brasileira diante dela. O texto é longo, mas de leitura recomendável ao que se preocupam em perceber os dilemas do mundo contemporâneo para além das lentes desfocadas - ou interesseiramente focadas - da grande mídia privada.


A impressionante euforia de uma quase unânime campanha midiática atuando como os tambores de guerra, tendo como alvo a Líbia, já provocou seus estragos iniciais: uma diplomacia facciosa, agressiva e guerreira arrancou à força uma condenação do país africano, sem sequer uma investigação concreta. Para tal foram suficientes os relatos de uma mídia controlada pela indústria bélica. Agora, prepara-se o terreno para novos passos da máquina de guerra imperialista.

O desejo de uma intervenção militar na Líbia é sonho antigo do Pentágono, nunca concretizado. Mas, agora, se de fato for lançada, pode ter como objetivo reprimir todos os povos árabes em rebelião com o intuito de assegurar a hegemonia dos interesses dos EUA na região, atualmente sob questionamento, seja pelas rebeliões populares, seja pela nova relação de forças em países como Irã, Turquia e Líbano.

Por tudo isto, é justo perguntar se não teria havido falta de protagonismo do Itamaraty na votação do caso Líbia na ONU? Será que todo o esforço do governo Lula em consolidar uma aliança Países Árabes e América do Sul não estaria sendo deixado um tanto de lado quando a representante do Brasil na ONU aparece posicionada ao lado de resoluções que podem facilitar a balcanização da Líbia, e, como conseqüência, trazer um grave retrocesso nas relações do Brasil com aquela região, como já se pode perceber na retirada parcial das empresas brasileiras do território líbio? Saem Queiroz Galvão, Odebrecht e Camargo Correia, e entra a Haliiburton? Seria este um dos resultados da intervenção pré-militar? Sem contar uma montanha de cadáveres...

Não foi simples para o presidente Lula construir sua política externa. Os adversários se posicionaram prontamente, fora e dentro do território nacional. Aqui dentro toda a mídia que, naturalmente, sempre foi historicamente vassala editorial de idéias emanadas pelas grandes potências. Não há uma única mídia de grande alcance hoje no Brasil que sustente uma linha editorial contrária à manutenção do status de vulnerabilidade ideológica, política, tecnológica, econômica e até militar em que se encontra o Brasil desde o nefasto período dos privateiros. Nem mesmo a TV Brasil conseguiu fazer uma linha editorial diferenciada, com um mínimo de sintonia, sequer exploratória, com o que foi a política externa lulista.

Retórica itamarateca?

Entre os argumentos manipuladamente utilizados contra Lula repetia-se - sem diversidade informativa alguma, como se pede na Constituição - que tudo era apenas uma retórica itamarateca. Não é preciso muitas linhas para contestar este pseudo-argumento: basta que se verifiquem os volumes do comércio, dos acordos, e das relações entre o Brasil e os países do Oriente Médio antes e depois de Lula. Lembremo-nos: neste período foi realizada, sob oposição dos EUA, a primeira Cúpula América do Sul-Países Árabes na história.

Há uma forte simbologia quando grandes empresas brasileiras retiram seus funcionários em função do evidente agravamento da crise na Líbia e a ameaça não apenas de uma guerra civil, mas de uma intervenção bélica da Otan para, quem sabe, levar novamente ao poder remanescentes da monarquia Idris, desde que concordem, obviamente, em privatizar novamente o petróleo líbio hoje estatizado, entregando-o a empresas norte-americanas, como no Iraque e na Arábia Saudita hoje.

Paralisação produtiva

A Revolução Líbia colocou a receita do petróleo para a elevação do padrão de vida de seu povo, tanto é que pertence a este país o mais elevado IDH da África, um salário mínimo dos mais elevados de todo o terceiro mundo, superior ao brasileiro, uma renda per capta parecida à nossa, sem contar a oferta de serviços públicos e gratuitos de saúde e educação em razoável qualidade. A receita petroleira tem sido também utilizada para a contratação de empresas e tecnologia do exterior para a realização de obras de infra-estrutura de grande porte, entre elas gigantescos canais de irrigação para alavancar a produção agrícola num território que, em 90 por cento, é desértico. A ingerência já produziu uma paralisação produtiva no País.

A construção de uma política externa brasileira enfatizando a integração latino-americana, não apenas em discursos mas, concretamente, com obras unificadoras de infra-estrutura que já não podem mais ser negadas pelo dilúvio de mentiras midiáticas, tem seu desdobramento na formatação de uma relação mais cooperativa com o mundo árabe e também com o Irã. Além disso, a busca de uma diversificação de exportações e importações - o que nunca agradou aos EUA - desdobra-se coerentemente numa relação mais protagonista a partir da relação com os países do Brics, bem como no G-20. Imagine o tamanho da crise que o Brasil enfrentaria se tivesse permanecido submetido a uma relação prioritária com os EUA...

Esta nova maneira de estar presente no mundo levou o Brasil a pelo menos duas operações de alto esforço e coragem, qual sejam, a busca de uma saída negociada e pacífica para a crise a partir do prepotente veto imperial ao programa nuclear do Irã, e também, na questão de Honduras, quando o governo Lula assumiu com arrojo a defesa da democracia diante do golpe de estado contra Zelaya, sinalizando que ela, a democracia, não é um atributo que estaria fora da agenda da cooperação e integração latino-americana, bem como do princípio da autodeterminação dos povos, violentada nestas duas oportunidades pelos EUA.

Comissão Internacional para uma solução pacífica

Lamentavelmente, a proposta de formação de uma Comissão Internacional para solução pacífica da crise da Líbia não partiu do Brasil, como era justo esperar, mas da Venezuela. Aliás, quando da tentativa de golpe contra a Venezuela, teria partido exatamente do Brasil, sob o governo Lula, a idéia de criar o Grupo de Amigos da Venezuela, buscando assegurar uma mesa de negociações e desencorajar qualquer aventura intervencionista. Certamente, embora justa, a proposta agora capitaneada pela Venezuela, teria muitíssimo mais abrangência e força política se oriunda do Brasil, tal como o Brasil se empenhou no caso do Irã para convencer a ONU a não dobrar-se aos tambores de guerra.

Estes, vale recordar, estão sempre prontos a repicar, especialmente diante da uma crise econômica que não foi vencida ainda pelos EUA, e que pode levar sua economia marcadamente dominada pela indústria bélica, a aproveitar a crise da Líbia para dinamizar a recuperação de sua crise interna, às custas de vidas e mais vidas, como se vê hoje no Iraque e no Afeganistão, sem qualquer vislumbre de solução no horizonte. Mas, para a indústria guerreira, a expansão das encomendas é a própria solução. Sobretudo, se a intervenção militar traz nova possibilidade de privatizar petróleo público, assegurando, sob a cobertura da ONU, uma rapina que não pode ser feita sem demolir as estruturas da Revolução Líbia e transformá-la num novo Kossovo, ou seja, em mais uma base militar dos EUA, como as mais de mil espalhadas pelo mundo hoje.

A política externa brasileira não pode estar associada a qualquer idéia que facilite a concretização deste plano sinistro! Seria sim um distanciamento ou falta de continuidade daquilo que foi construído pelo Itamaraty nos oito anos de Lula. E, para um país que pretende ter assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, não é recomendável deixar de zelar pelo prestígio internacional alcançado pelo Brasil exatamente por sua política externa soberana, independente, criativa e vocacionada para promoção da solução pacífica dos conflitos.

Razões propagandísticas

O passivo endosso brasileiro na ONU a esta escalada de agressividade diplomática dos EUA baseada, por sua vez, num dilúvio de informações manipuladas e jamais comprovadas, nos faz lembrar a tragédia de uma guerra lançada contra o Iraque e seu povo com base na suposta “existência de armas químicas de destruição em massa naquele país”. A semelhança com as “razões propagandísticas” utilizadas por Hitler para expandir o seu exército pela Europa é robusta. Assim como o atentado ao World Trade Center, cuja versão oficial encontra crescente contestação pelos mais eminentes cientistas norte-americanos, atuou como “razão propagandística” a la Hitler para que Bush impusesse sua guerra ao terror, inclusive contra países que mal possuem sistema de água encanada, como o Afeganistão, acusado, paradoxalmente, de ter perpetrado tão sofisticada operação.

Com coragem, o Brasil se opôs oficialmente à ação militar no Iraque no início do governo Lula.. Seria de se esperar a continuidade desta acertada política externa quando agora, contra a Líbia, também se constroem versões - razões propagandísticas – para que aquele território seja ocupado pelos marines. Se manipulação grosseira das teses dos direitos humanos é o que baliza a autorização diplomática para tal monstruosidade militar, é de se esperar condenação a todos que estão hoje encharcando de sangue muçulmano o solo do oriente. A começar pelos EUA que já mataram mais de um milhão de civis no Iraque e , somente nesta semana, despejou bombardeios que causaram a morte de 65 civis no Afeganistão. Por que o Itamaraty não condena tal carnificina?

Paradoxalmente, a arma virtual dos "direitos humanos" é sempre invocada antes do lançamento das armas reais, mortais e arrasadoras. A "emergência humanitária" é a chave de acesso do militarismo mais descarado, frente à ela não há debate, não há informação, não há dialética, negociação, verificação. Só resta a demonização absoluta daqueles se se opõem de algum modo às políticas imperiais.

Há muito que a elite brasileira e a sua mídia pró-império têm pressionado Dilma Roussef, desde a campanha eleitoral, para uma reviravolta pró-americana na política exterior, sob o paravento da defesa dos "direitos humanos" quanto ao caso Sakineh no Irã, e ao caso da oposição contra-revolucionária em Cuba. Fazem de tudo para enviar uma cunha entre Dilma e Lula. Assumir que a política externa vai defender os direitos humanos abstratamente, em qualquer lugar em que se encontrem ameaçados, é mais que um tiro no pé, abre o flanco da nação brasileira a uma intervenção militar para defender supostos ou reais direitos humanos violados, quem sabe na Amazônia, quem sabe no Nordeste. Como sempre sustentou o Itamaraty na era Lula, contribui mais para a defesa dos direitos humanos a paz no mundo, a relação harmoniosa entre todas as nações, o desenvolvimento econômico, a integração entre os países e a distribuição equilibrada das riquezas do mundo entre todos os povos.

Caso a intervenção militar da OTAN venha de fato a concretizar-se, nossa política externa deveria ter exigentes motivos para preocupar-se, jamais para, de algum modo, ter colaborado direta ou indiretamente com mais uma guerra. Nem na Guerra das Malvinas o Brasil deixou de reivindicar uma solução negociada e pacífica, o que não impediu de oferecer algum tipo de apoio logístico aos argentinos, seja por meio de aviões, de informações etc. conforme comprovam documentos em posse do estado brasileiro.

Lições para o futuro

Possuidor do maior tesouro de biodiversidade (Amazônia), de riquezas minerais monumentais como urânio, titânio, silício etc e também das reservas petroleiras pré-sal, além de território farto em água, o Brasil tem razões para buscar construir uma política estratégica cuidadosa, sobretudo se e quando as potências imperiais dão passos mais largos e ameaçadores no tabuleiro do xadrez mundial. Qual será o próximo?

Diante deste quadro fica evidente porque os EUA impõe vetos ao Programa Nuclear Brasileiro, como ao do Irã, e também ao nosso Programa Espacial, como revelaram os telegramas divulgados pelo Wikiliekes sobre a conduta do Embaixador norte-americano em Brasília a pressionar a Ucrânia para que não transfira tecnologia espacial ao Brasil. Os EUA, anos atrás, já havia pressionado Kadafi a abrir mão do Programa Nuclear líbio. Sem nada em troca, além de sanções, agressões, desestabilizações e bombardeios.

O que é difícil é entender por que o Brasil não faz agora um esforço prioritário para barrar mais uma guerra, associando-se a países que também podem formatar uma resistência internacional a mais esta aventura de uma economia imperial viciada em guerra e petróleo? Será delírio imaginar que no futuro não muito longe seja o Brasil o alvo de sanções simplesmente por dar continuidade ao seu programa nuclear? Vale lembrar que a energia nuclear só é considerada insegura e perigosa quando nas mãos de países como Irã ou Brasil, nunca sob o controle dos EUA, Inglaterra ou França.

Antes mesmo de qualquer investigação ou comprovação, a Líbia já foi penalizada com o congelamento de seus recursos financeiros depositados em bancos internacionais, o que, por outro lado, recomenda acelerar a concretização do lentíssimo projeto de construção do Banco do Sul, onde os recursos dos povos do sul poderiam estar depositados com segurança, não na insegurança dos bancos norte-americanos ou ingleses ou franceses, com um histórico de instabilidade e de fraudes recentes impressionantes.

Descontinuidade com o passado recente

A política externa formatada e aplicada por Lula, que a ela se empenhou pessoalmente em inúmeras viagens, alterou sobremaneira e positivamente a presença qualitativa do Brasil no mundo. Tal política requer consolidação, continuidade e aprofundamento, seja no plano da integração latino-americana, ou com a África, ou com os países árabes e do Oriente Médio, por onde encontram-se instaladas muitas empresas, equipamentos e pessoal brasileiros; como requer também não recuar da linha de diversificação sem se deixar prender por um ou outro grande país.

No caso da Líbia, será constrangedor contabilizar o imenso prejuízo para a economia brasileira acarretado pela retirada de empresas e trabalhadores brasileiros. Especialmente se elas vierem a ser substituídas por empresas diretamente vinculadas à indústria bélica, como a Haliburton, já que guerra e petróleo, para os EUA, são atributos de uma mesma política. Mais constrangedor será reconhecer que a política externa brasileira não teria atuado com o protagonismo que poderia exercer e que projetou durante os 8 anos do governo Lula, deixando margem para uma constatação amarga: a de que o endosso passivo e sem questionamento a sanções arrancadas à base de dilúvios midiáticos manipulativos na ONU, teve também alguma participação do Itamaraty. Uma descontinuidade com o passado recente.


quinta-feira, 3 de março de 2011

Mercados financeiros engordan R$ 7,5 bilhões com alta de juros

Nota veiculada pelo sítio Carta Maior, reproduzida a seguir, mostra a voragem do capital rentista no Brasil, sufocando o interesse (e as necessidades) de milhões de brasileiros. Eis o serviço que a esse capital pararasitário prestam o Banco Central e figuras como, por exemplo, o todo-poderoso Antônio Palocci. Até quando?

Reunião do Copom desta quarta-feira serviu um 'lexotan' de R$ 7,5 bilhões aos mercados financeiros, com mais uma alta de 0,5 ponto na taxa básica de juro do país. O valor equivale a quase quatro vezes o gasto previsto com o reajuste do Bolsa Família, anunciado no dia anterior, que deixou os 'mercados nervosos' embora beneficie 50 milhões de brasileiros mais pobres.

Desde 19 de janeiro, o BC já elevou em 1 ponto a taxa de juros, agora fixada em 11,75% - a mais alta do mundo. Significa que em apenas 41 dias, houve uma transferência de R$ 15 bilhões em recursos fiscais dos cofres públicos aos rentistas detentores da dívida interna. Em 2010, foram pagos, no total, R$ 190 bilhões em juros. O que diz a mídia sobre essa 'gastança' desenfreada?

terça-feira, 1 de março de 2011

Moacyr Scliar e o chamado da liberdade*

Flávio Aguiar
Do sítio Carta Maior

Ouvi dizer que, segundo um antigo provérbio árabe, quando morre um contador de histórias elas morrem um pouco também. O provérbio não deve se referir às narrativas propriamente ditas. Tradicionais, elas permanecerão na memória coletiva; originais, essa originalidade lhes garantirá a permanência. O provérbio deve se referir ao modo como as histórias são contadas, ou mesmo lidas. Até no livro, a persona - o jeito do escritor - permanece junto com as palavras da história.

De agora em diante, será impossível, pelo menos para os da minha geração, ler uma história do Scliar sem lembrar de que ele se foi para os eternos campos do seja-onde-for. Lá ele continuará, por certo, caçando palavras e histórias, e encantando as companheiras e os companheiros das peregrinações estreladas com seu jeito ao mesmo tempo translúcido e denso de contar.

Scliar escrevia simples e maneiro, cativava e espantava ao mesmo tempo. Universal, ele universalizou o seu bairro, o Bonfim, onde suas histórias - todas, mesmo aquelas que não tinham por tema as aventuras judaicas no mundo gaúcho - começavam. As histórias do Scliar tinham seu centro na idéia do deslocamento, eram histórias centrífugas.

Uma das que mais me ficou na memória foi a de alguém (um menino?) que tomava um barco na beira do Guaíba e desaparecia na cerração que se erguia do rio. Era ao mesmo tempo a resposta a um chamado e uma ironia do destino. Que histórias essa história continha? Ela foi uma das que inaugurou a página de "Estórias brasileiras" do jornal Movimento, nos idos de 1975.

Independentemente de outras que essa história materializava, ela tinha por moldura o chamado a que o próprio Scliar respondia, naquele afã de lutar contra a certeza do arbítrio ditatorial com a incerteza das palavras balbuciadas. A esse chamado da liberdade Scliar nunca se negou.

É justo que nos lembremos disso, no momento em que seu jeito de contar fica privado de sua presença física.

* O título é do blog.