sábado, 10 de março de 2012

Soldado não tem medo da chuva


Luiz Manfredini

Nos anos em que passei no Colégio Militar de Curitiba – quando os colégios militares eram escolas e quartéis a um só tempo – entre o ginásio e o começo do científico (hoje segundo grau), ouvia de sargentos e oficiais uma frase recorrente: “Soldado não tem medo de chuva”. Referia-se, a sentença, ao fato de não podermos usar guarda-chuvas, mesmo que o céu desabasse em aguaceiros. Devíamos enfrentar as chuvas – dos temporais de verão às entendidas chuvaradas de inverno – apenas envolvendo os quepes com um plástico apropriado, parte do uniforme.

Mas sargentos, oficiais e mesmo professores iam além. A coragem do soldado não se restringia às chuvas, aplicava-se aos demais fenômenos atmosféricos e a tudo o que fosse na vida. Coragem, atributo visceral do soldado, coragem física, moral, intelectual. E assim nos formamos entre aulas, marchas e desfiles.

Acontecimentos recentes, no entanto, me inculcam dúvidas. Parece-me que o soldado, se ainda não teme a chuva – não vejo nenhum militar, entre os poucos que hoje em dia usam farda fora dos quartéis, valendo-se de guarda-chuvas – passou a temer a verdade. É o que se depreende das reações dos clubes militares às declarações das ministras Maria do Rosário e Eleonora Menicucci, que defenderam investigações sobre torturas cometidas durante a ditadura implantada em 1964. A nota emitida pelos clubes, e veiculada pela Internet no dia 16 de fevereiro, também criticou a presidente Dilma Roussef por não ter reagido àquelas declarações.

O governo reagiu hierarquicamente. Afinal, a presidente é a comandante-em-chefe das Forças Armadas e esse pessoal que se reúne nos clubes do exército, aeronáutica e marinha, mesmo sendo da reserva, está submetido ao Estatuto Militar, sendo-lhe, portanto, vedado confrontar a autoridade. Diante disso, os presidentes dos clubes desautorizaram o texto que eles próprios haviam confeccionado.

Mas a insubordinação não cessou. Dias depois, sob o agressivo título – quase uma declaração de guerra - Eles que venham, por que não passarão, novo manifesto confirmou a nota inicial dos presidentes dos clubes, agregando mais assinaturas. Eram cerca de 400 oficiais superiores signatários, fora os subalternos, no último dia cinco, número que provavelmente cresceu. Esses clubes, embora congreguem oficiais da reserva, também vocalizam sentimentos da caserna.

A segunda nota foi veiculada num sítio mantido pela mulher do coronel reformado do exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, o tenebroso chefe do Doi-Codi paulista nos anos 70, onde torturou presos políticos, segundo acusações c que lhe são feitas.

Todo esse alvoroço tem um motivo: a Comissão da Verdade, que começará a funcionar logo, levantando – embora sem poder julgá-los - os crimes da ditadura militar. Para os militares insubordinados, a comissão é “ato inconsequente de revanchismo explícito e de afronta à Lei da Anistia com o beneplácito, inaceitável, do atual governo". Em outras palavras: esses militares não querem sequer tocar no assunto. Negam-se, terminantemente, a assumir suas responsabilidades perante o País, a irrecusável responsabilidade de ter deposto um governo constitucional em março de 1964 e instalado em seu lugar uma ditadura que perseguiu, prendeu, torturou e matou. Argumentam com base numa lei de anistia concedida por eles próprios, numa conjuntura em que ainda dispunham de certo poder de fogo, justamente para isentar-se da punição pelos crimes que cometeram. Essa lei deve ser revista, como o fizeram, corajosamente, os argentinos.

A covardia desses setores beira à insanidade em sua terminante negativa do passado. Recentemente, em entrevista, o general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva simplesmente negou que o jornalista Vladimir Herzog tenha sido trucidado na tortura, o mesmo ocorrendo em relação à atual presidente Dilma Roussef, para citar apenas dois casos mais emblemáticos em que esses militares fazem de conta que não aconteceu nada.

A Comissão da Verdade, logo que comece a funcionar, vai enfrentar essa resistência insana dos covardes. É preciso reagir a isso. A sociedade brasileira, que aspira conhecer seu passado, colocá-lo em pratos limpos para seguir em paz sua rota de desenvolvimento, democracia e progresso social, precisa se manifestar, cercar e neutralizar essas ilhas de reação e obscurantismo. É luta política de largo alcance. Mas irrecusável.

As forças armadas – indispensáveis, é bom que se diga, em qualquer nação soberana – só se desgastam com tal espetáculo de fuga à responsabilidade, de acabrunhante ausência de bravura. Afinal, o soldado não deve ser corajoso apenas em relação à chuva. Deve sê-lo, sobretudo, diante da história e da sociedade da qual é fruto e à qual deve servir.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

A esquizofrenia do discurso anti-cubano



Luiz Manfredini

Artigo publicado no sítio http://www.vermelho.org.br/

A viagem da presidente Dilma Roussef a Cuba, na semana passada, proporcionou ao discurso conservador – e à mídia que tão histrionicamente lhe presta serviços – mais uma das suas incursões recorrentes (e esquizofrênicas) em relação à vigência dos direitos humanos em Cuba.

Há, nesse discurso conservador, algumas vigas mestras que merecem registro. Trata-se de um discurso de propaganda (arma de combate político e ideológico, para usar a expressão feliz da presidente Dilma) e, como tal, faccioso, pois se sustenta naquilo que melhor lhe convém. Isto significa que ignora olimpicamente um campo fundamental dos direitos humanos, o dos direitos econômicos e sociais, a começar pelo mais elementar, pelo que é verdadeiramente essencial: o direito à vida. Evidentemente não teria como acusar Cuba nesse campo em que a Ilha é campeã indiscutível. Então volta as costas para essa face dos direitos humanos em Cuba.

Restam-lhe os direitos políticos. O pensamento conservador não consegue operar com outra noção política que não seja a da democracia liberal, meramente formal, restrita e epidérmica. Por isso é incapaz de perceber como a democracia socialista amplia substancialmente os direitos políticos da sociedade, enraizada que está em seus mais remotos rincões, fomentando consciência política e participação em massa e a todo instante. Ou pensam que aquelas gigantescas manifestações revolucionárias em Havana são realizadas sob a mira de fuzis? Ou pensam que democracia é o debate entre os ricaços que disputam a Presidência dos Estados Unidos, movidos a milhões de dólares, diante de um eleitorado cada vez mais apático e descrente?

Mas o discurso conservador, em função de sua natureza propagandística, também precisa descontextualizar a questão dos direitos humanos em Cuba. Mais uma vez o seu viés esquizofrênico, ou seja, apartado da realidade, delirante e opaco, ignora que a pequena Ilha está em guerra desde que deixou de ser cassino e prostíbulo para os endinheirados norte-americanos. Guerra que envolve desde o bloqueio econômico capitaneado pelos Estados Unidos até as mais sutis (e mesmo escancaradas) manobras de cerco diplomático, administrativo, militar e cultural. Guerra que vai das aparentemente ingênuas panfletagens a partir de pequenos aviões que, partindo da Flórida, por vezes burlam as defesa aéreas cubanas, até os mais perversos atos de sabotagem e terrorismo, como a guerra bacteriológica para envenenar plantações. Incrível é a ação do Escritório de Interesses dos Estados Unidos em Havana, que apóia, inclusive com dinheiro e materiais, iniciativas que visam derrubar o governo constitucional. O próprio Fidel, tempos atrás, admitiu que as franquias democráticas em Cuba poderiam ser mais amplas, não fosse o clima de subversão da ordem patrocinado pelos Estados Unidos, obcecada em derrubar o que a revolução construiu.

A rigor, o grande crime contra os direitos humanos no território cubano está na base militar norte-americana de Guantânamo, onde 171 prisioneiros acusados de terrorismo são mantidos num limbo jurídico. Nenhuma palavra sobre isso da mídia que representa o pensamento conservador? Nenhuma. Compreende-se: a esquizofrenia anti-cubana só trata do que lhe convém. Para ela, qualquer batedor de carteira, quando preso, é promovido a “dissidente”. As Damas de Branco e aquela blogueira picareta são as queridinhas dessa mídia reacionária, tratadas como as lídimas representantes de uma sociedade oprimida pela revolução. Quanta desfaçatez! Elas falam pelos cotovelos, volta e meia organizam manifestações (com apoio popular praticamente zero) e ainda posam de vítimas. E a mídia repercute esse pensamento de facção, sendo hegemônico, acaba por moldar a opinião pública, incluindo aí, lamentavelmente, certos setores da própria esquerda.

A postura da presidente Dilma em Cuba foi digna e não caiu nas armadilhas do conservadorismo. Querem discutir direitos humanos? Mas o façamos de modo multilateral e comecemos questionando o bloqueio norte-americano e Cuba e a base militar de Guantânamo. Foi mais ou menos o que ela disse em Havana, criticando os que usam o tema como arma política e ideológica.

Ao fazê-lo, Dilma refez-se de certa vacilação em política externa que marcou o início do seu governo. Na época, ao criticar o Irã, ela própria ergueu a bandeira dos direitos humanos de modo algo unilateral, fazendo coro, mesmo que esse não fosse seu desejo, com a hipocrisia do governo norte-americano. Refez-se disso, e bem. Vamos em frente.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Memória de Neblina: um romance inesperado

Por Nilton Bobato

Memória de Neblina, a nova obra do curitibano Luiz Manfredini, lançada em novembro de 2011, é antes de tudo um romance inesperado. Inesperado pela construção da narrativa, inesperado pela emocionante história, inesperado pela busca de uma memória já quase esquecida por boa parte da atual geração juvenil. Inesperado sim, mas para quem não conhece Luiz Manfredini.

Jornalista em Curitiba, onde nasceu em 1950 e vive até hoje, Manfredini trabalhou em O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e revista ISTOÉ, entre outros órgãos de imprensa. É colunista do portal Vermelho e membro do Conselho Editorial da revista Princípios, editada em São Paulo.

Antes de Memória de Neblina, Manfredini havia lançado As moças de Minas (1989, com reedição em 2008), que juntos compõem uma busca através da ficção de recompor as histórias de resistência à ditadura militar pela juventude das décadas de 60 e 70. Histórias que o próprio Manfredini vivenciou de perto ou foi parte integrante delas, principalmente no Memória de Neblina, inspirado na sua própria adolescência e militância estudantil.

Mais do que um esforço de recontar histórias que homenageiam a luta e a resistência juvenil, que homenageiam o pensamento progressista, Manfredini se apresenta em Memória de Neblina como um escritor moderno, capaz de construir uma narrativa de fôlego, complexa sem pseudointelectualismos, emocionante sem apelos emocionais baratos, pieguices ou fórmulas mirabolantes.

Ficcionando fatos reais, Memória de Neblina conta a história do reencontro de Lau, Pedro e Coati, três amigos que tentam reconstruir suas memórias tendo como base o período em que estudaram juntos no Colégio Militar de Curitiba e iniciaram sua militância política na resistência a ditatura militar.

Neste reencontro narrado pelo personagem Pedro, que se esforça para juntar os pedaços das três memórias, somando-se aos seus conflitos amorosos, narrativas de suas lutas, aventuras militantes e juvenis, histórias de acampamentos na Serra do Mar, encontros furtivos nas madrugadas de Curitiba, o romance tenta dissipar a neblina da historia da colonização paranaense, as mudanças da Curitiba da infância das personagens a Curitiba dos tempos atuais.

A história construída por uma narrativa moderna expõe a visão do narrador que constrói o texto intercalando narrativas capitaneadas pelas personagens de Lau e Coati, principalmente de Lau, o principal motivador e elo construtor da história compartilhada com duas mulheres, Ive e Samantha, que juntos com Bieslki, ou Girafão, compõem uma intricada rede de relações entre presente e passado.

Como afirma o texto de divulgação “Memória de Neblina é um romance sobre meninos e meninas que, sob a ditadura militar, conviveram com sonhos e pesadelos justamente quando estavam se formando para a vida. Hilários, dramáticos, amorosos, radicais, lutam e brincam a um só tempo. Vivem um tempo de trevas. Ainda assim, acendem risos. O lúdico não abandona o revolucionário. Nas frias madrugadas curitibanas, cobrem as imaculadas paredes de um colégio – todas elas – com poemas pichados com bastões de cera. Em seguida, mergulham em estrepulias até o amanhecer. Dias depois, lá estão eles distribuindo panfletos em um bairro operário e discursando sobre bancos de praças. Mais tarde, entre operários e camponeses, semeiam sua revolução. Memória de Neblina é, sobretudo, um elogio ao pensamento humanista e transformador.”

É um elogio ao pensamento humanista e transformador, mas é principalmente uma grande obra literária, que coloca Manfredini ao lado de grandes romancistas paranaenses que integram o cenário nacional literário, como Cristovão Tezza, Miguel Sanches Neto, Domingos Pelegrini ou Roberto Gomes.

O livro pode ser encontrado no site www.livrariascuritiba.com.br

Nilton Bobato é professor, escritor e poeta, membro do Conselho Nacional de Polícia Cultural do Ministério da Cultura, autor, entre outros livros, de Risos da fronteira, Prato Feito, Sobre a mesa e Prosa ds Estrada. Reside em Foz do Iguaçu (PR).

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O Brasil precisa frear os EUA

Economista norte-americano, Mark Weisbrot co-diretor do Centro para Pesquisas Econômicas e Políticas, em Washington, alerta: países como o Brasil precisam impedir os Estados Unidos de atacar o Irã. Antes que seja tarde.

Todos os governos que não querem uma guerra contra o Irã devem agir antes que seja tarde para impedi-la

É como se não tivessem aprendido nada com as mentiras e a sede imperial de poder que nos arrastaram para uma guerra assassina com o Iraque que consumiu trilhões de dólares. Na sexta, o conselho editorial do "New York Times" aplaudiu as ameaças militares dos EUA contra o Irã e pediu "pressão econômica máxima" contra o país.

E esse é o mais influente jornal "progressista" da América. A imprensa de direita, com um discurso de ódio que alcança milhões de pessoas por dia, é ainda pior.

O Irã vem reagindo com ameaças próprias de fechar o estreito de Hormuz -por onde passa um sexto do petróleo do mundo- se os EUA cortarem suas exportações de óleo. Não surpreende, já que o governo americano tenta estrangular economicamente o Irã. O enorme esforço diplomático e de propaganda internacional dos EUA pode não levar imediatamente a uma guerra -como foi o caso com a Guerra do Iraque, o timing de qualquer ataque será sujeito a considerações eleitorais.

O problema é que essas pessoas deitam as bases para uma guerra que ocorrerá quando o presidente decidir que convém. Quando essa hora chegar, é provável que seja tarde demais para impedir a guerra. Foi o que ocorreu no Iraque.

A marcha em direção à guerra acelera-se agora devido às eleições de 2012 nos EUA. A primária presidencial republicana é em sua maior parte um circo, com todos os candidatos, menos o libertário Ron Paul, lançando chamados por guerra e criticando Obama por não ser "suficientemente duro". Como Obama tenta arrebatar votos dos republicanos, sua reação é mostrar-se o mais aguerrido possível sem de fato iniciar uma guerra real.

Enquanto isso, o Congresso, com a Câmara controlada por republicanos e o Legislativo inteiro fortemente pelo lobby de Israel, soma mais pressão em favor da guerra.

Mas que ninguém se engane, imaginando que essa promoção da guerra em um ano eleitoral reflete a vontade dos eleitores americanos.

Os pré-candidatos republicanos estão competindo na primária pelos votos dos eleitores mais de direita, mais extremistas pró-guerra no mundo, e Obama os está seguindo.

E o lobby de Israel está seguindo o governo israelense de direita, pró-guerra. Mas dados de pesquisas indicam que, a despeito da lavagem cerebral diária, a imensa maioria dos americanos não deseja uma guerra com o Irã.

Como a mídia americana não reconhece a vontade da sociedade civil independente no que tange questões de política externa, a voz do povo americano passa sem ser ouvida. E não ajuda o fato de o governo americano ter usado sua influência na ONU para nomear um chefe submisso da Agência Internacional de Energia Atômica. Isso pode explicar a mudança recente de tom da agência, que adotou discurso mais aceitável pelo lado favorável à guerra.

Por isso tudo, apelamos ao Brasil e a outros governos que não querem essa guerra que nos ajudem a impedi-la. Quando, em maio de 2010, o Brasil e a Turquia propuseram um acordo de troca de combustível nuclear do Irã, isso funcionou como freio temporário da máquina de guerra. Precisamos de mais ajuda diplomática desse tipo.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O mundo do dinheiro e seus heróis

Emir Sader, no sítio Carta Maior


Até um certo momento os ricos ou escondiam sua riqueza ou tratavam de passar despercebidos, como se não ficasse bem exibir riqueza em sociedades pobres e desiguais. Ou até também para escapar da Receita.

De repente, o mundo neoliberal - esse em que tudo vale pelo preço que tem, em que tudo tem preço, em que tudo se vende, tudo se compra – passou a exibir a riqueza como atestado de competência. Nos EUA se deixou de falar de pobres, para falar de “fracassados”. Numa sociedade que se jacta de dar oportunidade para todos, numa “sociedade livre, aberta”, quem nao deu certo economicamente, é por incompetência ou por preguiça.

Ser rico é ter dado certo, é demonstrar capacidade para resolver problemas, ter criatividade, se dar bem na vida, etc., etc. Até um certo momento as biografias que se publicavam eram de grandes personagens da historia universal – governantes, lideres populares, gênios musicais, detentores de grandes saberes. A partir do neoliberalismo as biografias de maior sucesso passaram as ser as dos milhardários, que supostamente ensinam o caminho das pedras para os até ali menos afortunados.

Todos dizem que nasceram pobres, subiram na vida graças à tenacidade, à criatividade, ao trabalho duro, ao espirito de sacrifício. Tiveram tropeços, mas nao desistiram, leram algum guru de auto-ajuda que os fez aumentarem sua auto estima, acreditarem mais em si mesmos, recomeçarem do zero, até chegarem ao sucesso indiscutível.

Seus livros se transformam em best-sellers, vendem rapidamente – até que vários deles caem em desgraça, porque flagrados em algum escândalo -, eles viajam o mundo dando entrevistas e vendendo seu saber que, se fosse seguido por seus leitores, produziria um mundo de ricos e de pessoas realizadas e felizes como eles.

Quem vai publicar um livro de um “fracassado”? Só mesmo se fosse para que as pessoas soubessem quais os caminhos errados, aqueles que nao deveriam seguir, se querem ser ricos, bonitos e felizes. O mundo do trabalho, da fábrica, do sindicato, dos movimentos de bairro, das comunidades – mundo marginal e marginalizado.

Programas de televisão exaltam os ricos, os bem sucedidos, as mulheres que exibem sua elegância, sua falta de pudor de gastar milhões na Daslu e nas viagens a Nova York e a Paris. Ninguém quer ver gente feia, pobre, desamparada, que só frequenta os noticiários policiais e de calamidades naturais. As telenovelas tem como cenários os luxuosos apartamentos da zona sul do Rio e dos jardins de Sáo Paulo, com belas mulheres e homens que não trabalham, no máximo administram empresas de sucesso. Os pobres giram em torno deles – empregadas domésticas, entregadores de pizza, donos de botecos -, sempre como coadjuvantes do mundo dos ricos, que propõem o tipo de vida que as pessoas deveriam ter, se quiserem ser ricos, bonitos, felizes.

Esse mundo fictício esconde os verdadeiros mecanismos que geram a riqueza e a pobreza, os meios sociais – os bancos por um lado, as fábricas por outro – em que se geram a riqueza e a fortuna, a especulação e a expropriação do trabalho alheio. Em que estão os vilões e os heróis das nossas sociedades.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

O poder dos economistas

Luiz Carlos Bresser-Pereira


O economista Luiz Carlos Bresser Pereira, fundador do PSDB que, no ano passado, deixou o partido acusando-o de haver se tornado o partido dos ricos, mostra nesse breve, porém preciso artigo, como economistas do establishment "usam a teoria econômica neoclássica para justificar "cientificamente" o neoliberalismo -uma ideologia reacionária que durante 30 anos (1979-2008) promoveu o atraso e a desigualdade em todos os países que a aceitaram". 


Desde os anos 1970 os dirigentes das instituições financeiras e os economistas viram seu poder político crescer, mas o mundo também viu um imenso aumento da instabilidade financeira.

Enquanto financistas ganhavam milhões e milhões, o prestígio e o poder dos economistas aumentava. Enquanto estes, muitos transformados em financistas, aumentavam seus ganhos, as crises financeiras se multiplicavam, e a renda de cada país se concentrava nos 2% mais ricos.

Podemos buscar várias explicações para isso, mas creio que o fato histórico novo que teve papel determinante nessa mudança foi a decisão do presidente Nixon em 1971 de suspender a conversão do dólar em ouro ou, mais especificamente, a conversão das reservas em dólares dos outros países em ouro, se seus dirigentes o solicitassem.

A partir desse momento, o dinheiro perdeu referência com a economia real; a criação, o fluxo e a destruição de moeda passaram a ocorrer com grande facilidade; o endividamento do setor privado saiu de controle e, na falta de uma verdadeira âncora para a economia, as crises financeiras se tornaram, além de mais frequentes, também mais profundas.

O poder dos financistas e dos economistas aumentou porque eles passaram a ter um papel estratégico: seriam os gestores desse novo quadro monetário-financeiro -da "financeirização" da economia mundial. Mas, passados 40 anos, verificamos que fracassaram.

Os financistas, porque se preocuparam apenas em ganhar mais dinheiro para eles e para os rentistas. Os economistas, porque construíram uma teoria matemática -a teoria econômica neoclássica- que "demonstrava" que os mercados eram autorregulados, de forma que não havia por que gerir as economias nacionais e a economia mundial. Os dois, porque, ao desregularem os mercados financeiros, estavam "desgerindo" a economia.

Dani Rodrik informou em artigo recente (publicado no "Valor", 19.dez.2011) que um grupo de estudantes abandonou o curso de seu colega na Harvard University Greg Mankiw, protestando contra o fato de que "o curso propaga ideologia conservadora disfarçada de ciência econômica e ajuda a perpetuar a desigualdade social".

Os alunos foram benignos com a teoria econômica ortodoxa: deviam ter acrescentado que ajuda também a aumentar a instabilidade financeira e causar baixo crescimento.

Rodrik defendeu o colega, argumentando com o seu "paradoxo da globalização": que nos cursos os economistas neoclássicos ensinam uma teoria econômica sofisticada, onde as falhas de mercado são devidamente salientadas, mas, na hora de proporem políticas, adotam um liberalismo econômico simplista. Ele está enganado.

Essa teoria econômica matemática que se ensina nas grandes universidades, baseada nos pressupostos do "homo economicus" e das expectativas racionais e no modelo do equilíbrio geral é essencialmente falsa, porque usa o método hipotético-dedutivo e porque adota como critério de verdade a coerência lógica, não a conformidade com a realidade.

Mas não é uma teoria falsa por engano; o é por arrogância matemática que lhes dá monopólio sobre o saber e porque interessa aos economistas ensinar que os sistemas econômicos são autorregulados, bastando para isso corrigir suas pequenas falhas.

Dessa forma eles usam a teoria econômica neoclássica para justificar "cientificamente" o neoliberalismo -uma ideologia reacionária que durante 30 anos (1979-2008) promoveu o atraso e a desigualdade em todos os países que a aceitaram. E, ao mesmo tempo, dizem aos cidadãos desses países que fiquem calados, já que não dominam o "conhecimento" matemático e preciso