quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

No primeiro dia, governo grego cancela privatizações

 Esquerda.net
matthew_tsimitak / Flickr
O novo ministro da Energia da Grécia, Panagiotis Lafazanis, anunciou esta quarta-feira que vão ser cancelados os planos de privatização da Empresa Pública de Energia (DEH, sigla em grego), da qual o Estado grego ainda é o acionista maioritário.
 
A chamada “liberalização do mercado energético” foi uma das condições impostas pela troika à Grécia. O governo anterior tinha aprovado legislação para vender 30% da empresa aos grupos privados, mas o Syriza prometera durante a campanha cancelar esse e outros planos de privatização. A promessa está assim a ser cumprida no primeiro dia do governo liderado por Alexis Tsipras.

Lafazanis disse ainda que a eletricidade e o gás natural são muito caros na Grécia e não ajudam os cidadãos, anunciando que o governo vai preparar um novo plano para a energética. Para já, disse o ministro, o governo irá fornecer energia gratuita a 300 mil lares de famílias que viram o fornecimento cortado por não conseguirem pagar as contas.

Porto do Pireu também não será privatizado

Também a privatização do porto do Pireu, o maior da Grécia, foi suspensa. O governo anterior estava a vender 67% da Autoridade Portuária do Pireu ao Grupo Cosco (chinês). “O negócio com o Cosco será revisto em benefício do povo grego”, disse o vice-ministro Thodoris Dritsas, esclarecendo que o caráter público do porto do Pireu será mantido.

Também o ministro adjunto para a Infraestrutura, Christos Spirtzis, anunciou o cancelamento da privatização de infraestrutuas, como os aeroportos. Entre outras medidas, o governo anterior previra a privatização de 14 aeroportos regionais e a venda de milhares de hectares do antigo aeroporto de Atenas.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Lições gregas podem ser úteis ao Brasil



por Paulo Moreira Leite, publicado originalmente em seu site.
 
 
A vitória do Syriza nas eleições gregas, já admitida por seus adversários, lembra uma dessas viradas históricas na vida de um país.
 
Terá profunda repercussão na Europa, onde Espanha, Portugal e Itália, enfrentam um recessão prolongada depois do colapso financeiro de 2009.

A vitória pode produzir efeitos imprevisíveis sobre a economia mundial, caso, perante uma enfática manifestação das urnas, a União Europeia se mostre sem disposição política  para aliviar o sufoco de cinco anos dessa população de 9,8 milhões, o que pode gerar novas ondas de choque e instabilidade.
A causa do resultado eleitoral é fácil de ser decifrada. Envolve questões universais, que preocupam a humanidade em toda parte — emprego, recessão, colapso de serviços públicos — e costumam resolver eleições no mundo inteiro. Até por essa razão, permite paralelos com o Brasil.

Lula e Dilma teriam sido aniquilados, levando consigo as conquistas obtidas pela população a partir de 2003, como aconteceu com os social-democratas do Pasok, caso o governo brasileiro tivessem seguido a política que Atenas praticou nos últimos cinco anos — e que era recomendada pelos centros financeiros internacionais.

Se a eleição deste domingo na Grécia reuniu conflitos típicos da luta de classes também colocou, de forma aguda, a questão nacional. A crise de 2009 colocou o conflito da soberania nacional da Grécia frente aos poderes coloniais das grandes economias europeias, que nos últimos cinco anos submeteram o conjunto da população a um programa de descontrução da economia local.

E é por que tem esse caráter nacional que a eleição abriu caminho para uma remodelagem do sistema político, anunciando uma aposentadoria prolongada — quem sabe falencia definitiva — de partidos tradicionais.
Após uma austeridade prolongada e selvagem, num ambiente de chantagem no qual os mercados atravessaram várias regras da democracia para impor seus interesses — inclusive para impedir um referendo onde o povo diria sim ou não às propostas de austeridade — o eleitorado foi às urnas para fazer o ajuste de contas com a pobreza, o desemprego e a falta de perspectiva.

A mensagem é clara: venceu um partido que há poucos anos tinha uma presença simbólica ao lado de legendas tradicionais — mas cresceu com um discurso firme contra os programas de pobreza. O crescimento de um partido nazista dá bem uma ideia do ambiente de radicalização e confronto em que se encontra a Grécia.

Como acontece em países onde a situação atingiu um patamar desesperado — nos últimos anos, famílias de classe média arruinada disputavam vagas na fila das instituições de caridade destinada preferencialmente a população pobre — era possível encontrar eleitores do Syriza nos bairros chiques, nas lojas de artigos de luxo, entre empresários que em outros tempos eram votos assegurados à direita, revela Helen Smith, correspondente do Guardian em Atenas.

Os bilionários programas aprovados pela Troika — União Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional — destinavam-se a confortar os credores estrangeiros, ampliando a dívida do país – sem nada deixar para os investimentos que poderiam animar a economia e os programas sociais que protegiam o povo.

É normal, assim, que empresários e ex-empresários locais, interessados em reativar seus negócios, voltassem sua atenção a uma sigla que, em outros tempos, só causaria repulsa. A vitória teria sido ainda mais expressiva se, numa manobra burocrática, o governo conservador da Nova Democracia não tivesse impedido o alistamento de uma numerosa parcela de eleitores jovens — evitando a presença, nas urnas, da parcela mais sacrificada da população, reservatório natural de votos para o Syriza.

Do ponto de vista da economia, as urnas de domingo se encerram com vários pontos de interrogação — a começar pela provável resistência do governo de Angela Merkel para aceitar mudanças na política da União Europeia em relação a Grécia, permitindo que o país tenha acesso a uma parcela do pacote superior a 1 trilhão de euros recém-aprovado pelo Banco Central Europeu, que poderia dar oxigênio para a economia, estimulando os investimentos, o crédito e o crescimento. O futuro do governo do Syriza irá depender, fundamentalmente, de sua capacidade de conservar o apoio popular para transformar as propostas de palanque em medidas concretas, capazes de aliviar o imenso sofrimento da população grega e abrir uma nova perspectiva para o país.

Para os brasileiros, chega a ser irônico que, seis anos depois da crise dos derivativos, os gregos tenham escolhido um governo que denuncia a austeridade e, há um mês, em Brasília, Dilma Rousseff tenha escolhido Joaquim Levy para ocupar o ministério da Fazenda, no lugar de Guido Mantega, que teve um papel decisivo na política de estímulo que permitiu ao país atravessar a crise de 2009.

A verdade é que não há termo de comparação entre os programas impostos a Grécia ao longo dos últimos anos e as propostas de ajuste que Levy e a equipe econômica. São universos separados pela geografia, pela história e pela política. Mas o afundamento do tradicional sistema político da Grécia demonstra que o eleitorado costuma ser impiedoso com partidos que não correspondem a suas promessas e compromissos. A indignação do eleitorado explica por que o desgaste do conservador Nova Democracia, que aplicou os programas de austeridade, encurvado perante a Troika, tenha sido até menor que o desmoronamento dos socialistas, eleitos com a promessa de promover o bem-estar e proteger os direitos dos trabalhadores.

O principal objetivo do ajuste consiste em recuperar a confiança dos empresários, mercadoria que, concordam monetaristas e desenvolvimentistas, é indispensável para fazer a economia capitalista funcionar. Comprometida com a perspectiva de  “arrumar a casa”, a presidente tem se demonstrado particularmente zelosa quando se trata dos direitos dos trabalhadores. É bom que seja assim.

Três dias depois de ser empossado no Ministério do Planejamento, Nelson Barbosa anunciou que estava em curso uma mudança na legislação do salário mínimo. Acabou obrigado pela presidente a divulgar uma nota à imprensa na qual dizia que tudo seguirá como está. Na semana passada, quando o Financial Times atribuiu a Joaquim Levy a afirmação de que o seguro-desemprego estava ultrapassado, o próprio ministro da Fazenda foi levado a divulgar nota corrigindo o jornal. Para que não restasse um fiapo de dúvida, o ministro Miguel Rossetto, secretário particular da Presidência da República, definiu o seguro-desemprego como cláusula pétrea, conceito constitucional em que se encontra a proibição do país produzir armas nucleares, por exemplo.

domingo, 25 de janeiro de 2015

A crise, o Brasil, os dilemas de Dilma

Por Walter Sorrentino*

Governo que vem de acentuar a férrea fórmula macroeconômica, ancorada agora na retomada do superávite primário, a qual decididamente não é a que o país precisa para avançar. Ficou escrito: o país não vai retomar o crescimento em 2015, quiçá em 2016. A medida acrescenta combustível para instabilidades sociais e, naturalmente, agudiza instabilidades políticas, quanto a coesionar a base de sustentação no Congresso, sem falar dos desdobramentos da Operação Lava a Jato.

No primeiro semestre de 2014, PT e PCdoB confluíram nas propostas para a campanha Dilma tendo por centro a realização das reformas estruturais. Para ambos, o desafio da produtividade e competitividade da economia brasileira eram centrais, para o quê a elevação dos investimentos públicos e privados em inovação era a base.

Em junho de 2014, o PCdoB ofereceu ao programa da disputa diretrizes básicas interligadas, entre as quais o redesenho da política macroeconômica. O superávit primário deveria, para isso, ter duas submetas explícitas e obrigatórias: uma, financeira, de estabilizar a dívida pública; outra, de meta fiscal para maior investimento público. Ao mesmo tempo, propôs ampliar para 36 meses o horizonte para o cumprimento da meta da inflação, permitindo acomodar instabilidades e, simultaneamente, promover a desindexação de contratos progressivamente – causa notável da inflação brasileira. Por fim, nesse desenho, deveria se buscar uma taxa de câmbio competitiva, praticando uma política industrial horizontal capaz de diminuir custos da produção.

Mas, perante a situação econômica do país e do mundo, Dilma tratou de “recompor a confiança dos investidores”, “arrumar a casa”, mediante a âncora de um ajuste fiscal, com subsequente cortes no orçamento, elevação dos juros e “ajoelhar-se no milho” para comprovar a confiança de honrar a dívida pública mediante superávit primário.

O fato é que a opção tomada, com a nova orientação no Ministério da Economia, promoverá ajuste recessivo da economia, com diminuição da capacidade de investimento público, elevação dos juros e “ajoelhando-se no milho” para demonstrar capacidade de honrar a dívida pública mediante o superávite primário, pesado ônus que consumirá energias do país em benefício dos financiadores da dívida pública, predominantemente rentistas.

Enfim, a Presidenta manobrou para sair da tentativa de isolamento e cerco a que está submetida por parte dos setores conservadores políticos e midiáticos. É uma gestão política da situação, nas condições de força existente no Brasil em meio à crise econômica mundial em curso. Estabeleceu-se uma espécie de consórcio respeitado de parte a parte, com desejadas fronteiras e prazos definidos, entre o programa da disputa presidencial sustentada pela candidata e a indicação de Levy ao Ministério da Economia. Aparentemente, espera-se que seja um freio de arrumação, um passo atrás, para permitir dois passos ulteriores à frente, ainda durante o seu mandato.

A grita se avoluma, à esquerda e à direita. Nem sempre com muita luz, sempre com muito calor.

A força atuante de fundo é que o país segue aprisionado nas tenazes do tempo.

À direita é preciso desmascarar sua falácia. Não há porque subestimar o peso da crise econômica mundial. Fora dela não se compreenderá nada das relações de força que de desdobram no mundo atual. Em última instância, o sistema financeiro resgatou-se da crise emitindo dinheiro contábil, com profundos efeitos sociais regressivos, que comprometem toda uma geração. Resgate que sequestra os próprios Estados nacionais e Bancos Cenrais em sua lógica financeira, e aprofunda a crise econômica e social. Afinal, foi respondida a pergunta feita em 2008 se os países emergentes seriam capazes de sustentar o ritmo da economia mundial. Não foram. Enfrenta-se a terceira onda da crise, afetando o crescimento econômico dos países emergentes, após a aguda situação nos EUA, primeiro, seguida da crônica situação europeia e japonesa, aquela patinando na austeridade. Estagnação é o mote mundial, coexistindo com deflação nos países mais centrais e inflação nos emergentes, com as exceções de praxe.

O Brasil não foi imune a isso. Tem que arcar com o movimento das economias mais poderosas em face da formidável luta em torno de interesses de Estados e blocos. Os profundos efeitos desestablizantes sobre os países emergentes das ações de facilitação quantitativa promovida pelos EUA e, agora, Europa, bem o demonstram, jogando a relação dólar-real numa gangorra.

Aliás, após a descoberta do Pré Sal e a mudança de paradigma em sua exploração, o Brasil entrou ne tela de radar de modo mais agudo e central: a espionagem flagrada por parte dos EUA; a IV Frota no Atlântico Sul, pressões quanto ao preço das comodities etc, estão longe de serem eventos de geração espontânea. Afinal, está se lidando com o status quo dominante mundial imperialista (a palavra é bem usada, creiam), ainda inexpugnado, que é a força das finanças e a hegemonia da orientação econômica e cultural neoliberal. Como dizia Lênin, são forças capazes de arrastar nações inteiras ao abismo, hoje ainda mais que em seu tempo.

À esquerda, não há porque desconsiderar esse panorama mundial constrangendo a economia brasileira e reduzindo suas margens de manobra. A nação não tem ainda as forças necessárias para a inteira defesa de seu interesse e Estado nacional, em meio a essa realidade de crises e instabilidades mundiais. Nesse sentido, não foram os erros, mas a coragem, que se deve destacar nas medidas arrojadas tomadas pelo primeiro governo Dilma: juros em queda, mantendo emprego, renda, elevação dos salário mínimo, estimulando o consumo e os investimentos públicos, num movimento contracíclico.

É preciso considerar que fora da política não há como nenhum governo gerir os dilemas e contradições com que se lida. Seria inconsequente a crítica que não levasse isso em conta. Falar em submissão de Dilma seria desconsiderar a integridade e os compromissos da presidenta, e fazer vistas grossas ao fato de que a indicação de alguém como Joaquim Levy para a Economia teve a pressão de Lula, nada mais, nada menos – um cálculo político, portanto.

Falar em viragem estratégica, como foi a de Miterrand na França em 1982, que perdurou pelos outros 13 anos de seus mandatos, é ficar nas analogias aparentes. Não há porque deixar de reiterar a confiança da pregação da candidata, quanto a não aceitar retrocessos no emprego, renda, salário e conquistas sociais. Ela é íntegra e consequente, tem claro o norte. Seu governo deverá ser julgado em quatro anos deste novo mandato.

O que é indispensável é a crítica progressiva, a que esclarece, une forças, apresenta alternativas, mobiliza. Para isso as forças de esquerda, políticas e sociais, não precisam nem podem ocupar o mesmo lugar político do governo, embora devam sustentá-lo contra o retrocesso do projeto estratégico.

Diante da nova orientação macroeconômica, não há, portanto, por que as forças políticas e sociais avançadas deixarem de batalhar renhidamente contra quaisquer retrocessos sociais – até ajuda-se a presidenta em seu compromisso. Envolve pressão, luta autônoma para disputar o governo e, sobretudo, a sociedade. Envolve constituir consensos e mobilizações mais elevados e avançados. Por que um ajuste fiscal com superávite que premia os detentores de títulos públicos com altos juros, condenando a produção e consumo? Por que não, mesmo que essa manobra se impusesse temporariamente, uma reforma tributária, num novo consenso de distribuição de renda e diminuição das desigualdades? Por que não firmar nova parcela do Fundo Social do Pré-Sal para investir em um grande esforço de inovação para a produtividade e competitividade da economia brasileira, destacada nas propostas do PCdoB apontadas acima?

Por que não imposto sobre herança e sobre grandes fortunas, se se precisa ampliar a arrecadação? Por que não caminhar, progressivamente, para um pacto universalista na disputa do orçamento público, ou seja, voltado para os grandes empreendimentos da reforma urbana, saúde e educação?

O governo não pode garantir tudo que o povo trabalhador, a nação e seu projeto estratégico carecem – isso era uma ilusão (ou acomodação) no tempo do lulismo. O mínimo que se pode dizer é que a sociedade brasileira está inquieta, em parte temerosa de retrocessos no crescimento econômico e de suas conquistas, em parte aspirando a mais conquistas. Inquieta mas em boa parte desreferenciada politicamente. A esquerda brasileira não pode perder seu principal ativo: estabelecer uma agenda mais ambiciosa, para um horizonte mais largo e profundo, um projeto de nação e de Estado nacional capaz de sustentá-lo.

O que é preciso são forças mais poderosas para avançar. O governo e seu poderio são parte delas, por isso lutamos tanto por conquistá-lo e sustentá-lo. Mas a parada se decide em luta, em mobilização pela força das ideias e mobilização de largos contingentes sociais, novos consensos que gerem referências políticas renovadas para lidar com uma sociedade que vivencia profundas transformações progressivas materiais e espirituais.

Essa reunião de forças está a exigir um bloco político-social de esquerda e progressista, para atuar com uma plataforma comum, respeitando as contradições existentes nesse campo, agindo no governo e nas ruas, nos movimentos sociais e na sociedade civil, disputando as opiniões na sociedade. Sem isso, vence-se eleições, mas não se tem hegemonia política e cultural. Sem isso, blasfema-se contra a escuridão, mas não se faz luz nem movimento. A “cara” desse bloco é a grande luta pelas reformas reformas estruturais, acentuadas na campanha e reclamadas pela sociedade.


*Walter Sorrentino é médico e secretário nacional de Organização do PCdoB. Texto originalmente publicado no portal Vermelho.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Concentração da riqueza e perspectiva do socialismo

José Carlos Ruy *

Não se pode considerar apenas do ponto de vista moral o relatório divulgado nesta semana pela Oxfam sobre a concentração da riqueza no mundo, por escandalosos que sejam os números apresentados. A realidade objetiva ali descrita ilustra a essência do capitalismo e é dessa maneira que aqueles dados precisam ser avaliados.

Ele tem um título significativo: Wealth: having all wanting more (Riqueza - tendo tudo e querendo mais, numa tradução livre; o relatório pode ser lido, em inglês, no endereço http://www.oxfam.org/sites/www.oxfam.org/files/file_attachments/ib-wealth-having-all-wanting-more-190115-en.pdf ).

Ele descreve uma situação que não é nova nem surpreendente para os analistas criticos do capitalismo - sistema cuja tendência, como Karl Marx denunciou faz mais de 150 anos, é concentrar de maneira extrema a riqueza no polo formado pelos donos do capital e disseminar a pobreza por todo lado.

Concentrar renda e riqueza faz parte da natureza do modo de produção capitalista. O relatório da Oxfam é a descrição mais recente e atualizada dessa tendência que se acentuou nas últimas décadas: aquele 1% de privilegiados viu sua parcela da riqueza crescer 60% nos últimos 20 anos apesar da crise econômica.

Aquela parcela mínima de seres humanos privilegiados detinha, em 2014, 48% da riquerza existente, e sua parcela cresce apesar da crise econômica mundial. Em 2009, eram donos de 44% da riqueza; daqui a dois anos, sua fatia poderá superar 50% do total, dando então àquele 1% mais riqueza do que terão todos os demais 99% dos seres humanos.

Outro dado que ilustra essa extrema concentração mostra que apenas 80 supermiiionários tem mais dinheiro do que a metade mais pobre dos habitantes do planeta, formada por , 3,5 bilhões de pessoas. Esse dado fica ainda mais dramátrico quando se leva em conta que mais de um bilhão de pessoas mal tem dinheiro para comer, sendo forçadas a sobreviver com menos de R$ 3,00 (três reais) por dia.

Segundo o relatório, considerando o grupo intermediário dos 20% da população (que seria dono de 46% da riqueza), sobraria para os demais 80% dos seres humanos apenas 5,5% da riqueza existente. Pelo cálculo da Oxfam, cada um dos mais ricos tem tanto dinheiro quanto 700 dos mais pobres!

A Oxfam surgiu na Inglaterra em 1942 para combater a fome e a pobreza. Ela faz parte de uma linhagem de organizações que aparecem de tempos em tempos para tentar dar uma face mais “humana” ao capitalismo.

Neste sentido, o relatório agora divulgado tem o objetivo de sensibilizar os multimilionários reunidos no Fórum Econômico Mundial em Davos (Suíça) onde vai debater os problemas e impasses provocados pela extrema concentração da riqueza. Na mais autêntica linhagem dos socialistas utópicos do passado, que se dirigiam aos muito ricos por reformas no capitalismo, dirige-se à cúpula multimilionária com o mesmo objetivo.

Winnie Byanyima, diretora-executiva da Oxfam e co-presidente do Fórum Econômico Mundial, não esconde a perplexidade e preocupação com os dados recentes e pensa que se a tendência à concentração não for controlada, haverá uma ameaça à estabilidade global. "A amplitude das desigualdades mundiais é vertiginosa", disse.

O estudo reafirma a existência de riscos que já apontou em relatórios anteriores. Além da ameaça cada vez maior de guerras e de crises políticas, a concentração de riqueza em poucas mãos de poucos inibe o desenvolvimento da economia e representa riscos ambientais.

Estas questões, que são relevantes, impõe uma pergunta: é possível, no limiar do modo de produção capitalista, eliminar os males apontados?

O modo de produção capitalista prepara, em seu desenvolvimento, as condições para a nova forma de organizar a vida que vai substituí-lo. Um modo de produção resulta do desenvolvimento econômico, social, cultural e ideológico da humanidade e, até agora, nenhum deles foi eterno, qualidade de durabilidade no tempo que o capitalismo também não tem. O capitalismo,desde que surgiu, fez a riqueza disponivel avançar de maneira nunca vista até então, e isto foi reconhecido pioneiramente por Marx e Engels, no próprio Manifesto do Partido Comunista, de 1848.

Mas, ao lado da riqueza e dos avanços, o modo de produção capitalista trouxe contradições que pensalizam o povo e os trabalhadores. A mais severa delas talvez seja a tendência natural no capitalismo da concentração da renda e da riqueza.

Esta tendência pode ser vista também como uma das contradições que pode acelerar a superação final deste sistema por outra forma de organização da vida. Por várias razões. Uma delas decorre do fato de que a concentração de renda e riqueza, que se acelera nos momentos de crise econômica deste sistema, coloca em xeque o funcionamento da lei do valor e pode comprometer a capacidade do capitalismo reproduzir-se como sistema.

A tendência à concentração opera aqui de duas maneiras, ambas igualmente nocivas para o sistema capitalista. Por um lado, ela cresce nos momentos em que as crises econômicas provocam desemprego em massa e queda nos salários dos trabalhadores. São momentos em que se acentua a concorrência intercapitalista, provocando maior aplicação da ciência à produção capitalista (a chamada tecnologia). Ao lado disso crescem também os investimentos financeiros, quase sempre improdutivos (buscam ganhos em juros e não na produção). O resultado aqui é o velho conhecido dos trabalhadores: o desemprego em massa.

Em consequência há forte queda na produção de riqueza nova e, assim, da mais valia apropriada pelo capital. Dito de outra maneira, a queda nos investimentos produtivos, o desemprego e a crescente aplicaçlão da ciência à produção alteram aquilo que Marx chamou de “composição orgânica” do capital. Cresce o chamado capital constante (máquinas e equipamentos) e diminui a parcela relativa do capital variável (formado pelos salários pagos aos trabalhadores). Como a taxa de lucro na produção capitalista resulta da relação entre capital constante e capital variável, a alteração em que aquele cresce e este diminui tem uma consequência funesta para o capital: a tendência à queda na taxa de lucros. Com o corolário das dificuldades crescentes para a reprodução do capital.

Uma das ameaças citadas no relatório da Oxfam pode ser entendida como uma referência a estas dificuldades; ela diz respeito explicitamente às ameaças que a concentração de riqueza representa para o desenvolvimento da produção.

Outro aspecto das “ameaças” representadas pela concentração de renda e riqueza é aquele em que esta concentração pode ser encarada como uma antessala do socialismo. Riqueza e propriedade concentradas em poucas mãos significam também o aumento do número de pessoas dedicadas à sua administração. Um capitalista não é um super-homem com poderes excepcionais e capaz de administrar sozinho, ou num pequeno grupo, tanta propriedade e dinheiro. É um trabalho que exige verdadeiros exércitos de trabalhadores, em escritórios ou mesmo nas formas contemporâneas de trabalho em domicílio. Eles aplicam seus conhecimentos e talentos para gerir propriedades e interesses alheios. Ao dedicar-se a esta tarefa antecipam também tarefas semelhantes que poderão desempenhar no futuro - só que num sistema de outra natureza, gerido por uma lógica oposta à do capitalismo. Se neste sistema servem ao lucro e à ganância, num sistema que o substitua poderão servir à vida e ao bem estar de todos. 


De novo está recolocada para a humanidade a mesma encruzilhada já apontada faz tantos anos por Engels e Rosa Luxemburg: socialismo ou barbárie. A humanidade acumulou conhecimentos e produção material suficientes para um novo passo civilizatório. E só a ousadia desse passo poderá significar a superação das mazelas e ameaças apontadas pelo relatório da Oxfam.

 
José Carlos Ruy é jornalista, membro da Comissão Editorial da revista Princípios e do Comitê Central do PCdoB            

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O terror, o "ocidente" e a semeadura do caos

Por Mauro Santayana, em sua coluna do Jornal do Brasil

Há alguns dias, terroristas franceses, ligados, aparentemente, à Al Qaeda, atacaram a redação do jornal satírico parisiense Charlie Hebdo, em represália pela publicação de caricaturas sobre o profeta Maomé.

Doze pessoas foram assassinadas, entre elas alguns dos mais famosos cartunistas e intelectuais do país, e dois cidadãos de origem árabe, um deles, estrangeiro, que trabalhava há pouco tempo na publicação, e um membro das forças de segurança que estava nas imediações.

Logo em seguida, houve, também, outro ataque, a um supermercado kosher na periferia de Paris, em que 4 judeus franceses e estrangeiros morreram.

Dias depois, milhões de pessoas, e personalidades de vários países do mundo, se reuniram nas ruas da capital francesa, para protestar contra o atentado, e se manifestar contra o terrorismo e pela liberdade de expressão.

Na mesma primeira quinzena de janeiro, explodiram carros-bomba, e homens-bomba, também ligados a grupos radicais islâmicos, no Líbano (Beirute), na Síria (Aleppo), na Líbia (Benghazi), e no Iraque (Al-Anbar), com dezenas de mortos, em sua maioria civis.

Mas, como sempre, não seria normal esperar que algum destes fatos tivesse a mesma repercussão do atentado em Paris, capital de um país europeu, ou que a alguém ocorresse produzir cartazes e neles escrever Je suis Ahmed, ou Je suis Ali, ou Je suis Malak, Malak Zahwe, a garota brasileira, paranaense, de 17 anos, que morreu na explosão  de um carro-bomba, junto com mais 4 pessoas (20 ficaram feridas), no dia 2 de janeiro, em Beirute.

No entanto, os homens, mulheres e crianças, mortos, todos os dias, no Oriente Médio e no Norte da África, são tão frágeis e preciosos, em sua fugaz condição humana,  quanto os que morreram na França,  e vítimas dos mesmos criminosos, criados pela onda de radicalização e rápida expansão do fundamentalismo islâmico, nos últimos anos.

Raivosas, autoritárias, intempestivas, numerosas vozes se alçaram, em vários países, incluído o Brasil, para gritar - em raciocínio tão ignorante quanto irascível - que o terrorismo não tem que ser "compreendido" e, sim, "combatido".

Os filósofos e estrategistas chineses ensinam, há séculos, que sem conhecê-los, não é possível vencer os eventuais adversários, nem mudar o mundo.

Além disso, não podemos, por aqui, por mais que muitos queiram emular os países "ocidentais", em seu ardoroso "norte-americanismo" e "eurocentrismo", esquecer que existem diferenças históricas, e de política externa, entre o Brasil, os EUA, e países da OTAN como a França. 

Podemos dizer que Somos Charlie, porque defendemos a liberdade e a democracia, e não aceitamos que alguém morra por fazer uma caricatura, do mesmo jeito que não podemos aceitar que uma criança pereça bombardeada pela OTAN no Afeganistão ou na Líbia, ou porque estava de passagem, no momento em que explodiu um carro-bomba, por um posto de controle em Aleppo, na Síria.   

Mas é preciso lembrar que, ao contrário da França, nunca colonizamos países árabes e africanos, não temos o costume de fazer charges sobre deuses alheios em nossos jornais, não jogamos bombas sobre países como a Líbia, não temos bases militares fora do nosso território, não colaboramos com os EUA em sua política de expansão e manutenção de uma certa "ordem" ocidental e imperial, e, talvez, por isso mesmo - graças a sábia e responsável política de Estado, que inclui o princípio constitucional de não intervenção em assuntos de outros países - não sejamos atacados por terroristas em nosso território.

As raízes dos atentados de Paris, e do mergulho do Oriente Médio na maior, e, com certeza, mais profunda  tragédia de sua história, não está no Al Corão ou nas charges contra o Profeta Maomé, embora estas últimas possam ter servido de pretexto para ataques como o que ocorreu em Paris.

Elas começaram a se tornar mais fortes, nos últimos anos,  quando o "ocidente", mais especificamente alguns países da Europa e os EUA, tomaram a iniciativa de apoiar e insuflar, usando também as redes sociais, o "conto do vigário" da Primavera Árabe em diversos países, com a intenção de derrubar regimes nacionalistas  que, com todos os seus defeitos, tinham conquistado certo grau de paz, desenvolvimento e estabilidade para seus países nas últimas décadas.

Inicialmente promovida, em 2011, como "libertária", "revolucionária", a Primavera Árabe iria,  no curto espaço de três anos, desestabilizar totalmente a região, provocar massacres, guerras civis, golpes de Estado, e alcançar, por meio da  intervenção militar direta e indireta da OTAN e dos EUA em vários países, a meta de tirar do poder,  a qualquer custo, regimes que lutavam para manter um mínimo de independência e soberania em suas relações com os países mais rico

Quando os EUA, com suas "primaveras" - que não dão flores, mas são fecundas em crimes e cadáveres - não conseguem colocar no poder um governo alinhado com seus interesses, como na Ucrânia e no Egito, jogam irmão contra irmão e equipam com armas, explosivos, munições, terroristas, bandidos e assassinos para derrubar quem estiver no comando do país. 

O objetivo é destruir a unidade nacional, a identidade local, o Estado e as instituições, para que essas nações não possam, pelo menos durante longo período, voltar a organizar-se, a ponto de tentar desafiar, mesmo que em pequena escala, os interesses norte-americanos.

Foi assim que ocorreu com a intervenção dos EUA  e de aliados europeus como a Itália e a França - contra a recomendação de Brasil, Rússia, Índia e China, no Conselho de Segurança da ONU -  no Iraque, na Líbia e na Síria. 

Durante décadas, esses países - com quem o Brasil tinha, desde os anos 1970, boas relações - viveram sob relativa estabilidade, com a  economia funcionando, crianças indo para a escola, e diferentes etnias, religiões e culturas, dividindo, com eventuais disputas, o mesmo território.

Estradas, rodovias, sistemas de irrigação, foram construídos - também com a ajuda de técnicos, operários  e engenheiros brasileiros - com os recursos do petróleo, e países como o Iraque chegavam a importar automóveis, como no caso de milhares de Volkswagens Passat fabricados no Brasil, para vender aos seus cidadãos de forma subsidiada. 

Na Líbia de Muammar Kadafi, segundo o próprio World Factbook da CIA, 95% da população era alfabetizada, a expectativa de vida chegava, para os homens, segundo dados da ONU, a 73 anos, e a renda per capita e o IDH estavam entre os maiores do Terceiro Mundo, mas esses dados nunca foram divulgados normalmente pela imprensa "ocidental".   

Pode-se perguntar a milhares de brasileiros que estiveram no Iraque, que hoje têm entre 50 e 70 anos de idade, se, naquela época, sunitas e xiitas se matavam aos tiros pelas ruas, bombas explodiam em Basra e Bagdá todos os dias, como explodem hoje, a qualquer momento, também em Trípoli ou Damasco,  ou milhares de órfãos tentavam atravessar montanhas e rios sozinhos, pisando nos restos de outras crianças, mortas em conflitos incentivados por "potências" estrangeiras, ou tentavam sobreviver caçando, a pedradas, ratos por entre escombros das casas e hospitais em que nasceram.   

São, curdos, xiitas, sunitas, drusos, armênios,  cristãos maronitas, inimigos?

Antes, trabalhavam nos mesmos escritórios, viviam nas mesmas ruas, seus filhos frequentavam as mesmas salas de aula, mesmo que eles não tivessem escolhido, no início, viver como vizinhos.

Assim como no caso de hutus e tutsis em Ruanda, e em inúmeras ex-colônias asiáticas e africanas, as  fronteiras dos países do Oriente Médio foram desenhadas, na ponta do lápis, ao sabor da vontade do Ocidente, quando da partilha do continente africano por europeus, obedecendo não apenas ao resultado de Conferências como a de Berlim, em 1884, mas também à máxima de que sempre se deve "dividir para comandar", mantendo, de preferência,  etnias de religiões e idiomas diferentes dentro de um mesmo território ocupado pelo colonizador.

Eram Saddam Hussein e Muammar Kadafi, ditadores? É Bashar Al Assad, um déspota sanguinário?

Quando eles estavam no poder, não havia atentados terroristas em seus países. 

E qual é a diferença deles e de seus regimes, para os líderes e regimes fundamentalistas islâmicos comandados por xeques e emires, na mesma região, em que as mulheres - ao contrário dos governos seculares de Saddam, Kadafi e Assad - são obrigadas a usar a burka, não podem sair de casa sem a companhia do irmão ou do marido,  se arriscam a ser apedrejadas até a morte ou chicoteadas em caso de adultério, e não há eleições, a não ser o fato de que esses regimes são dóceis aliados do "ocidente" e dos EUA?

Se os líderes ocidentais viam Kadafi como inimigo, bandido, estuprador e assassino, por que ele recebeu a visita do primeiro-ministro britânico Tony Blair, em 2004; do Presidente francês Nicolas Sarkozy - a quem, ao que tudo indica, emprestou 50 milhões de euros para sua campanha de reeleição - em 2007; da Secretária de Estado dos EUA, Condoleeza Rice, em 2008; e do primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi em 2009?  

Por que, apenas dois anos  depois, em março de 2011 - depois de Kadafi anunciar sua intenção de nacionalizar as companhias estrangeiras de petróleo que operavam, ou estavam se preparando para entrar  na Líbia (Shell, ConocoPhillips, ExxonMobil, Marathon Oil Corporation, Hess Company)  esses mesmos países e os EUA, atacaram, com a desculpa de criar uma Zona de Exclusão Aérea sobre o país, com 110 mísseis de cruzeiro, apenas nas primeiras horas, Trípoli, a capital líbia, e instalações do governo, e armaram milhares de bandidos - praticamente qualquer um que declarasse ser adversário de Kadafi - para que o derrubassem, o capturassem e finalmente o espancassem, a murros e pontapés, até a morte?   

Ora, são esses mesmos bandidos, que, depois de transformar, com armas e veículos fornecidos por estrangeiros, a Líbia em terra de ninguém, invadiram o Iraque e, agora, a Síria, e se uniram para formar o Estado Islâmico, que pretende erigir uma grande nação terrorista juntando o território desses três países, não por acaso os que foram mais devastados e destruídos pela política de intervenção do "ocidente" na região, nos últimos anos.        

Foram os EUA e a Europa que geraram e engordaram a cobra que ameaça agora devorar a metade do Oriente Médio, e seus filhotes, que  também armam rápidos botes no velho continente. Serpentes que, por incompetência e imprevisibilidade, depois da intervenção na Líbia,  a OTAN e os EUA não conseguiram manter sob controle.   

Os Estados Unidos podem, pelo arbítrio da força a eles concedida por suas armas e as de  aliados - quando não são impedidos pelos BRICS ou pela comunidade internacional - se empenhar em destruir e inviabilizar pequenas nações - que ainda há menos de cem anos lutavam desesperadamente por sua independência - para tentar estabelecer seu controle sobre elas, seu povo e seus recursos, objetivo que, mesmo assim, nunca conseguiram alcançar militarmente.

Mas não podem cometer esses crimes e esses equívocos, diplomáticos e de inteligência, e dizer, cinicamente, que o fizeram em nome da defesa da Liberdade e da Democracia. 

Assim como não deveriam armar bandidos sanguinários e assassinos para combater governos que querem derrubar, e depois dizer que são contra o terrorismo que eles mesmos ajudaram a fomentar, quando esses mesmos terroristas, além de explodir bombas e matar pessoas em Bagdá, Damasco ou Trípoli, todos os dias, passam a fazer o mesmo nas ruas das cidades da Europa ou dos próprios Estados Unidos.

O "terrorismo" islâmico não nasceu agora. 

Mas antes da balela mortífera da Primavera Árabe,  e da Guerra do Iraque, que levou à destruição do país, com a mentirosa desculpa da posse, por Saddam Hussein, de armas de destruição em massa que nunca foram encontradas - tão falsa quanto o pretexto  do envolvimento de Bagdá no ataque às Torres Gêmeas, executado por cidadãos sauditas, e não líbios, sírios ou iraquianos - não havia bandos armados à solta, sequestrando, matando e explodindo bombas nesses 3 países.

Hoje, como resultado da desastrada e criminosa intervenção ocidental, o terror  do Estado Islâmico, o ISIS, controla boa parte dos territórios e da sofrida população síria, iraquiana e líbia, e, a partir deles, está unindo suas conquistas em torno da construção de uma nação maior, mais poderosa, e extremamente mais radical do ponto de vista da violência e do fundamentalismo, do que  qualquer um desses países jamais o foi no passado.

O ataque terrorista à redação e instalações do semanário francês Charlie Hebdo, e do Mercado Kosher, em Vincennes, Paris, foram crimes brutais e estúpidos. 

Mas não menos brutais, e estúpidos, do que os atentados cometidos, todos os dias, contra civis  inocentes, entre muitos outros lugares, como a Síria, o Iraque, a Líbia, o Afeganistão.

Quem quiser encontrar as sementes do caos que também atingiram, em forma de balas, os corpos dos mortos do Charlie Hebdo poderá procurá-las no racismo  de um continente que acostumou-se a pensar que é o centro do mundo, e que discrimina, persegue e despreza, historicamente, o estrangeiro, seja ele árabe, africano ou latino-americano; e no fundamentalismo branco, cristão e rançoso da direita e da extrema direita norte-americanas, cujos membros acreditam piamente que o Deus vingador da Bíblia deu à "América" do Norte o "Destino Manifesto" de dirigir o mundo.

Em nome dessa ilusão, contaminada pela vaidade e a loucura, países que se opuserem a isso, e milhões de seres humanos, devem ser destruídos, mesmo que não haja nada para colocar em seu lugar, a não ser mais caos e mais violência, em uma  espiral de destruição e de morte, que ameaça a sobrevivência da própria espécie e explode em ódio, estupidez e  sangue, como agora, em Paris, neste começo de ano.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Umberto Eco e o manual do mau jornalismo

"Número Zero", novo romance do escritor italiano, é ambientado em 1992 e mostra a história de um jornal criado para difamar. Texto publicado originalmente pela revista Carta Capital.                               



                
Umberto Eco
Umberto Eco fala sobre o jornalismo em seu novo livro
 
Por Kelly Velazquez
 
O famoso escritor e ensaísta italiano Umberto Eco apresentou nesta semana na Itália seu novo romance, Número zero, uma espécie de manual do mau jornalismo ambientado na redação de um jornal imaginário.

O novo livro do influente intelectual italiano, autor do famoso romance O nome da rosa e de importantes tratados de semiótica, é uma história de ficção ambientada em 1992, um ano particular para a Itália contemporânea, marcado pelos escândalos de corrupção e pela investigação "Mani Pulite" (Mãos limpas), que arrasou com boa parte da classe política da época.

O livro se concentra, sobretudo, nos mistérios não resolvidos que sacudiram nestes anos a Itália, entre eles o protagonizado pela loja maçônica Propaganda 2 do temido Licio Gelli, que queria dar um "golpe branco". "É o primeiro romance de Eco que fala de uma época tão recente", reconhece Elisabetta Sgarbi, diretora da editora Bompiani.

Eco descreve a redação imaginária de um jornal, criado naquele ano, para desinformar, difamar adversários, chantagear, manipular, elaborar dossiês e documentação secreta. "Para mim é um manual da comunicação de nossos dias", sustenta Roberto Saviano, renomado jornalista antimáfia da Itália, que vive sob escolta pelas ameaças de morte que recebe das organizações criminosas.

Em uma conversa entre Eco e Saviano, publicada pela revista L'Espresso, o semiólogo afirma que não quis escrever um "tratado de jornalismo", mas contar uma história sobre os limites da informação, sobre como funciona uma máquina de denegrir, e não tanto sobre o trabalho de informar. "Escolhi o pior caso. Quis dar uma imagem grotesca do mundo, ainda que o mecanismo da máquina para sujar, de lançar insinuações, já fosse usado durante a Inquisição", comentou Eco.

Saviano, que considera que as redes sociais multiplicaram esta forma de denegrir gerando verdadeiros monstros, acredita que o magnata das comunicações e ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi marcou o início dessa era, entre boatos e informações, vida e vícios tanto privados quanto públicos. "Escolhi 1992 porque considero que este ano marca o momento de um declínio na história da sociedade italiana", disse Eco em uma entrevista ao Corriere della Sera.

No livro, o semiólogo se diverte citando frases famosas ou lugares comuns do jornalismo, como "no olho do furacão", "um duro revés" ou "com a água no pescoço". "Não é necessário estrangular a avó para perder a credibilidade. É suficiente contar que o juiz usa meias na cor laranja. Por que será?", contou Eco citando um caso verdadeiro durante uma longa entrevista à RAI.

Graças aos delírios de um redator paranoico, Eco conta fatos concretos, mas reconstruídos a partir de teorias bizarras ou que se entrelaçam estranhamente com outras e que terminam por criar uma nova notícia.

É o caso da loja maçônica P2, do suposto assassinato do papa Luciani (João Paulo I), dos cúmplices das brigadas vermelhas que trabalhavam para os serviços secretos, dos tentáculos da CIA, dos atentados e até de um falso cadáver de Benito Mussolini com o qual conseguiram salvá-lo e enviá-lo à Argentina. Todas são histórias que o leitor não conseguirá determinar se são fatos inventados ou a descrição da realidade, segundo o escritor.

Trata-se do sétimo romance de Eco, que publicou, entre outros, O Cemitério de Praga e O Pêndulo de Foucault.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Por que a extrema esquerda fracassou e acabou isolada

Esse fracasso da extrema esquerda hoje é generalizado nos países de governos progressistas, como Venezuela, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador e Brasil.          

por Emir Sader em seu blogue.     
 

Quando foram sendo eleitos governos na onda do fracasso e rejeição aos governos neoliberais, predominantes nos anos 1990 na América Latina, ao mesmo tempo foram se reconstituindo as forças de extrema esquerda, na crítica desses governos.

Nenhum deles foi poupado, mas inicialmente o governo Lula foi objeto mais concentrado dessas críticas. Motivos não pareciam faltar. Desde a “Carta aos brasileiros”, Lula parecia encaminhar-se para o abandono das teses históricas da esquerda, repetindo a experiência histórica que os trotskistas sempre anunciaram: a social democracia se comporta como força de esquerda, quando está na oposição, mas basta chegar ao governo, para romper com as teses históricas da esquerda, “traindo” a esquerda e os trabalhadores, para se revelar como uma manobra de engano do povo e de continuidade, sob outra forma dos governos da direita.

Uma equipe econômica conservadora, uma reforma regressiva da previdência, discurso tímido – tudo parecia confirmar a tese da “traição”. Cabia, perfeitamente, uma critica pela esquerda, sobre a questão central do período: a superação do modelo neoliberal, que era feita pela esquerda do PT.

Discutia-se se o governo seguia estando sob disputa entre tendências conservadoras e de esquerda, até que um grupo considerou que era um governo “perdido”, saiu do PT e a fundou um novo partido. O grupo foi rapidamente hegemonizado por trotskistas (da tendência morenista, de origem na Argentina), que enquadravam a evolução do PT no governo no modelo clássico da “traição”.

Porém, ao invés de elaborar uma crítica de esquerda e formular alternativas, rapidamente esse grupo pegou carona nas denúncias do “mensalão”, que a mídia lançou contra o PT. Fazendo com que a “traição” tivesse uma conotação de “corrupção”, como sintoma de uma degradação moral do governo.

A líder do grupo, Heloisa Helena, com seu destempero verbal, tratava o governo como “gangue” e com outros epítetos afins, tão ao gosto da classe média. Esse grupo, que supostamente saia pela esquerda para fundar o PSOL, rapidamente somava-se, de maneira subordinada à ofensiva da direita contra o governo.

A campanha eleitoral de 2006 foi a consagração dessa aliança tácita: todos contra o governo Lula, inimigo fundamental de uns e dos outros.  Nela, o PSOL consolidou sua opção pela critica moralista, da “traição” do Lula. Quem trai, se torna cada vez pior, reprime, reproduz exatamente o governo da direita. Dai as armadilhas em que caiu o PSOL.

Se concentrou em tentar demonstrar, primeiro, que não teria havido “herança maldita”, desconhecendo totalmente a profunda e prolongada recessão produzida pelo governo FHC e a situação herdada do Estado, do mercado interno, da exclusão social, da precarização das relações de trabalho, entre outras. Pior ainda do que isso, passou a desconhecer – da mesma forma que a direita – as diferenças do governo Lula com o governo FHC, em particular a prioridade das políticas sociais.

Além de que desconhece que a polarização neoliberalismo/antineoliberalismo é o enfrentamento central do período histórico atual e, por isso, desconhece que o governo Lula faz parte do movimento histórico da região de construção de governos posneoliberais. Desconhece o papel dos novos governos latinoameicanos, como único polo mundial de resistência ao neoliberalismo.

A aliança oportunista com a direita contra o governo Lula se deve à consciência de que só teriam espaço, se o PT fracassasse. Então se somam a essa frente, que toma o governo Lula como seu inimigo fundamental.

A essa aliança se soma a atitude ultra esquerdista de, no segundo turno, entre Lula e Alckmin, ficar equidistante, como se fosse o mesmo que ganhasse um ou outro. Imaginem o Alckmin presidente do Brasil diante da crise de 2008! Bastaria isso para nos darmos conta da posição absurda no segundo turno, mas coerente com a opção feita pelo PSOL.

Depois do brilhareco momentâneo das eleições de 2006, em que o desempenho da Heloisa Helena, presidente do partido, chegou a ser vergonhoso, promovida pela Globo para permitir a chegada ao segundo turno, o perfil do partido claramente baixou. Se deram conta que seu projeto de construir uma alternativa nacional tinha fracassado. A candidatura de Marina, que herdou boa parte dos votos de Heloisa Helena, confirmou isso. As posições posteriores da ex-candidata complementaram a imagem de uma pessoa individualista, reacionária em relação a temas como  o aborto e a democratização dos meios de comunicação, descontrolada, sem condições de liderar um partido de esquerda.

Enquanto isso, ao invés de ser derrotado, o governo Lula, pelos efeitos das politicas sociais, foi ampliando seu apoio popular, de forma constante, até o fim do governo Lula, permitindo a eleição da Dilma.

O desempenho do candidato do PSOL nas eleições seguintes, Plinio de Arruda Sampaio, que contou com muitos espaços na mídia, na mesma busca de votos para chegar ao segundo turno contra o PT, confirmou o fracasso politico do partido, quando teve 1% dos votos, menos até que outros grupos pequenos, com muito menos espaços na mídia. Desde então o partido tem uma postura de marcar posição, sem nunca ter formulado projeto estratégico alternativo para o Brasil, ficando reduzido a uma força do campo de denuncias do “mensalão”.

Enquanto que uma força de esquerda radical deveria, antes de tudo, ter uma analise especifica da sociedade brasileira, do grau de penetração do neoliberalismo, para propor um projeto de superação desse modelo, que articule antineoliberalismo com anticapitalismo. Deveria analisar o governo do PT reconhecendo os avanços realizados e apoiá-los, ao mesmo tempo que criticar suas debilidades. Se propor a ser aliado do governo à sua esquerda, nos aspectos comuns e crítico nos outros.

Teria que apoiar a política externa do governo, suas políticas sociais, seu resgate do papel ativo do Estado nos planos econômico e social. Que apoiar o conjunto de governos progressistas na região, que protagonizar os processos de integração regional.

Caracterizar o governo como  força progressista, força moderada no campo da esquerda, enquanto esse partido seria uma força mais radical do mesmo. Para isso precisaria ter clareza dos inimigos fundamentais, que compõem o campo da direita – EUA, PSDB e seus aliados, a mídia oligárquica, o sistema bancário. Para impedir qualquer risco de se confundir com a direita contra o governo.

Essa via foi inviabilizada pela opção que o PSOL assumiu e reafirmou ao longo do governo do PT, isolando-se, sem apoio popular, valendo-se dos espaços que a mídia direitista lhe concede, quando entende que podem prejudicar o governo.

Virou um partido denuncista, de causas corretas e outras duvidosas. Nem sequer valoriza o imenso processo de democratização social que tem transformado positivamente o Brasil na ultima década.

Esse fracasso da extrema esquerda hoje na é generalizado nos países de governos progressistas – Venezuela, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador -, com desempenhos mais ou menos similares, mas a mesma incapacidade de compreender a natureza do periodo histórico neoliberal e o papel progressista que tem esses governos. A extrema esquerda terminou tomando como seus inimigos fundamentais a esses governos, aliando-se, tácita ou explicitamente à direita contra eles, abandonando a possibilidade de compor um quadro da esquerda, onde seriam a alternativa mais radical. Ficam isoladas, em posturas denuncistas, sem propostas alternativas. Enquanto que os governos progressistas, a esquerda na era neoliberal, se constituem, em escala mundial, na referencia central na luta antineoliberal.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

A França e a falsificação histórica

Por Paulo Moreira Leite, em seu blog, reproduzido pelo blogue do Miro.

Antes de completar uma semana, a justa indignação diante do assassinato dos profissionais da revista Charlie Hebdo pode transformar-se num espetáculo inesquecível de falsificação histórica.

Submetidos a um longo passado de segregação, preconceito e violência, os 6 milhões de franceses que seguem a religião muçulmana agora são apresentados como a principal ameaça à segurança e ao progresso de seu país. Saudadas como reivindicações legítimas por várias décadas, suas aspirações a uma vida menos desigual, sem exclusão, passaram a ser vistas como inconvenientes e perigosas.

O fantasma do “radicalismo muçulmano” ganhou um reforço ontem, quando se anunciou que cinco mil soldados foram deslocados para garantir a segurança de escolas judaicas do país. Falando de Paris, um radialista afirma que a polícia estima que 1400 jihadistas armados se encontrem na França.

Como acontece em qualquer outro país, os franceses só teriam a ganhar se utilizassem episódios obscuros de sua própria história para refletir sobre os perigos da vida presente. A perseguição ao capitão do Exército Alfred Dreyfus, que em 1895 chegou a ser aprisionado a ferros ao sol da Guiana sob a falsa acusação de traição a patria, ajuda a lembrar os riscos de permitir que o preconceito oriente decisões da política e da Justiça. Dreyfus foi reabilitado em 1906 mas em 1940, quando as tropas de Hitler entraram em Paris, a mesma multidão que pressionou pela condenação do capitão judeu deu sustentação ao governo colaboracionista do Marechal Petain.

De maior utilidade nos dias que correm, o mais prolongado conflito entre franceses e muçulmanos - naquele tempo eles eram chamados de “árabes” - foi a Guerra da Argélia. Prolongou-se por oito anos, entre 1954 e 1962 e deixou lições dolorosas para um país que, em outras épocas, teve pleno direito de dar lições de democracia e liberdade ao conjunto de homens e mulheres do planeta, independente de classe, raça ou nacionalidade. Suas lições são preciosas e surpreendentes.

Invadido e conquistado em 1830, por mais de um século o território argelino foi destinado a colonos franceses que se mudavam para o norte da África em busca de uma vida melhor. Em 100 anos de atividade colonial naquele lugar as áreas cultiváveis em poder dos franceses e seus descedentes passaram de 11.500 hectares para 2,7 milhões, concentração que, entre outras coisas, estimulou as primerias levas de imigração nativa em direção ao outro lado do Mediterrâneo. Nas imensas áreas recém-conquistadas, agricultores de origem francesa plantavam na colonia e vendiam, na metrópole, “os frutos da terra roubada,” como definiu Jean-Paul Sartre, uma das grandes consciências da França do século XX, autor de reflexões de grande utilidade sobre o tema — como você verá em outros parágrafos desta nota. Como se pode imaginar, a cobiça cresceu um pouco mais depois que se descobriram as imensas reservas de petróleo.

Em 1945, num primeiro levante contra os ocupantes franceses, uma massa calculada em até 70 000 pessoas foi massacrada em Létif. “Exterminando a esse subproletariado, (os franceses) se arruinaram a si mesmos,” disse Sartre, sem deixar de observar que a tragédia ocorreu “no momento em que ia nascer o Tribunal de Nueremberg,” aquele que julgou os comandantes de Adolf Hitler.

Nove anos depois, quando os revolucionários da Frente de Libertação Nacional anunciaram que “a longa noite de colonialismo terminou”, o então ministro do Interior, François Mitterrand - socialista como François Holland - pronunciou uma frase inesquecível: “A Argélia é a França. Quem entre vós hesitaria em empregar todos os meios para salvar a França?”

Nenhum meio foi recusado mas nada se salvou. Incapaz de aceitar a noção de que seria impossível de vencer os argelinos em sua própria terra natal, e que era mais prudente negociar um acordo de paz, o exército francês decidiu abandonar os métodos de guerra convencional e adotar a tortura como método preferencial de interrogatórios, com objetivo de dizimar as organizaões revolucionárias, exatamente como mostra a obra prima A Batalha de Argel.

Os militares franceses não inventaram a tortura, conhecida há muito tempo. Mas ajudaram a generalizar o procedimento. Desenvolveram técnicas, aperfeiçoaram métodos, inovaram - inclusive através do assassinato e desaparecimento de prisioneiros, que nunca poderiam ser localizados nem identificados. Tampouco teriam seus restos mortais devolvidos aos familiares, exatamente como seria feito, duas décadas mais tarde, na Argentina, no Chile e no Brasil.

Num depoimento à jornalista Marie-Dominique Robin, autora de “Esquadrões da morte: a escola francesa”, o general Paul Aussarenesses fala em 3.000 desaparecidos - um número brutal, equivalente a um milionésimo da população total da Argélia, hoje. Apesar da tortura, logo ficou claro que a luta dos argelinos iria prosseguir - com mais força, mais dura.

Convencidos de que o governo civil, em Paris, tornara-se fraco demais para assegurar a vitória, os generais do comando militar na Argélia não hesitaram mais uma vez. Ferindo o frágil regime democrático, deram um golpe de Estado, levando o general Charles De Gaulle de volta ao governo.

Num mundo onde a luta anti-colonial estava em vário pontos do mapa da Áfica, Asia, na América Latina, a nova especialidade tornou-se muito procurada. Em pouco tempo a Escola Superior de Guerra, em Paris, passou a oferecer cursos para oficiais estrangeiros, revela Ceferino Reato, autor do livro “Disposición Final,” dedicado a esclarecer a máquina de morte da ditadura Rafael Videla, na Argentina. Sob supervisão de oficiais formados nos interrogatórios de Argel, logo apareceram alunos de outros países, “portugueses e israelenses, ” escreve Reato. Em 1960 - a guerra nem havia terminado - o esforço para exportar esse tenebroso conhecimento se ampliou.

Oficiais franceses estabeleceram uma missão permanente em Buenos Aires, no décimo segundo andar do Edifício Libertador, sede do Exércio, ao lado da Casa Rosada, palácio presidencial argentino, o que permite concluir que o aprendizado argelino ajudou a construir a mais violenta das ditaduras do ciclo militar sul-americano.

Em outubro de 1961, quando estava claro que a derrota do império colonial francês caminhava para a derrota definitiva, a polícia decidiu dispersar por todos os meios um protesto de 30 000 argelinos, em Paris. Ocorreu uma matança. No dia seguinte, dezenas de cadáveres foram vistos boiando pelo Senna. No início de 1962, quatro meses antes do acordo de paz, os chefes militares providenciaram outra inovação: a anistia para seus crimes, ideia que em 1979 seria importada pelos militares brasileiros. Aprovaram uma medida que envolveu “todos os fatos cometidos no marco das operações de manutenção da ordem dirigidas contra a insurreição argelina.” Graças a essa decisão, antigos oficiais-torturadores seguiram carreira acadêmica, enquanto outros se converteram à vida parlamentar. Jamais foram processados - como ocorreu com seus colegas brasileiros.

O coronel Marcel Bigeard, que na Batalha de Argel ensina seus homens a maltratar prisioneiros, terminou a carreira como um dos oficiais mais condecorados da história da França e chegou a ministro da Defesa. A doutrina para a guerra contrarevolucionária, eufemismo para o ensinamento de técnicas cruéis de interrogatório, passou a ser ensinada e exportada de maneira oficial, com base em acordos bilaterais de assessoramento. Quando a paz foi feita entre Paris e Argel, o ambiente era de guerra e loucura entre franceses. Através de uma organização secreta, oficiais se organizaram para tentar assassinar De Gaulle.

Descrevendo um império que desabava, Sartre deixou um retrato daquele processo histórico, em que as duas partes só conseguem se prejudicar: “quando o colonialismo está prestes a se arruinar, a metrópole e a colonia são vitimas de seu enfraquecimento. Na tentativa de manter a colonização, a metrópole perde tudo o que foi lucrado com o sistema. E a colonia se enfraquece demasiadamente por causa da violência dos colonizadores.”

Sartre se referia à França e à Argelia, mas também poderia estar falando da colonia francesa do Haiti. Dois séculos antes, em 1789, quando os revolucionários de Paris anunciaram os Direitos do Homem, os escravos da América Central se levantaram para exigir o fim do cativeiro. Foram massacrados.

Também seria possível referir-se a derrota da Indochina, futuro Vietnã - de onde veio Jean-Marie Le Pen e o discurso do ressentimento contra estrangeiros.

Filho de uma professora que tinha uma admiração especial pela cultura francesa e uma imensa vontade de conhecer Paris, oportunidade que a vida não lhe ofereceu, cresci ouvindo Edith Piaf. Assisti aos filmes de Jean-Luc Godard na idade certa e acompanhei, de longe, o fogo do maio de 1968. Conheci dezenas de exilados brasileiros que encontraram refugio na Franças, durante a ditadura militar. Vivi dois anos em Paris como correspondente e, graças ao ambiente cultural da cidade, na época, encontrei a oportunidade de reconstruir a formação que trazia do Brasil.

Três décadas depois, é razoável perguntar qual opção o governo de François Holland irá tomar franceses diante de um atentado que merece repúdio universal – mas não pode ressuscitar assombrações de seu próprio passado.

A mídia brasileira está usando o sangue do Charlie em causa própria

Paulo Nogueira, no DCM*

Um jornalista britânico pergunta, no Independent, se haveria a mesma comoção se o atentado contra o Charlie Hebdo tivesse como alvo uma publicação de extrema direita. Respondo com uma pergunta. Alguém consegue imaginar uma marcha, no Brasil, que congregue pessoas emocionalmente arrasadas que segurem cartazes que digam: “Sou a Veja?” Ou mesmo: “Sou a Globo?” Ou ainda: “Sou a Folha?”

Enquanto isso, no Brasil …


Enquanto isso, no Brasil …

Ou indo para pessoas físicas. Feche os olhos e veja multidões com cartazes assim: “Eu sou Jabor”. Ou: “Eu sou Merval”. Ou: “Eu sou Reinaldo Azevedo”. Ou: “Eu sou Sheherazade”.

A direita tem poder e dinheiro, mas não comove ninguém. Não muito tempo atrás, festas nas ruas celebraram na Inglaterra a morte de Margaret Thatcher.

Testemunhei uma delas, em Trafalgar Square, berço da majestosa coluna de Nelson, o almirante que impôs a primeira grande derrota à França de Napoleão.

As grandes empresas de jornalismo do Brasil e seus porta-vozes – os reais chapas brancas da mídia — são o exato oposto do Charlie. Defendem um mundo de privilégios que provocava vômitos mentais nos cartunistas mortos.

Isso não tem impedido a mídia brasileira de usar a tragédia do Charlie, cinicamente, em causa própria.

O sangue dos cartunistas franceses vem sendo utilizado sobretudo para barrar a discussão em torno da regulação da mídia no Brasil.

A liberdade de expressão pela qual morreram os jornalistas do Charlie seria, aspas, e pausa para uma gargalhada, ameaçada pela regulação.

Já que falamos de Nelson, evoquemos também Wellington, o herói inglês de Waterloo: quem acredita nisso acredita em tudo.

A “liberdade de expressão” pela qual se batem as empresas jornalísticas brasileiras pode ser resumida assim: vale tudo para defender os próprios privilégios.

Você pode assassinar reputações sem prova e sem consequências jurídicas. Você pode usar concessões públicas como rádios e tevês como arma de propaganda contra ideias e pessoas que representam ameaças, reais ou imaginárias, às mamatas. Você pode concentrar o direito à opinião em quatro ou cinco famílias. Você pode formar monopólio impunemente.

Você pode tudo, em suma – e sem contrapartida. Numa disputa com dois barões da mídia na década de 1930, o então premiê britânico Stanley Baldwin produziu uma frase ainda hoje amplamente citada no Reino Unido.

Depois de dizer que os jornais de ambos eram na realidade “máquinas de propaganda” para servir a interesses pessoais, e não públicos, Baldwin afirmou: “O que os donos desses jornais querem é poder, mas poder sem responsabilidade, coisa que no correr dos tempos tem sido o atributo das marafonas.”

De Baldwin para cá, a opinião pública inglesa esteve constantemente vigilante em relação aos barões da mídia.

O último deles, Rupert Murdoch, virou um pária social depois que os ingleses souberam os métodos que um jornal seu empregava para obter furos.

Sob a fúria da opinião pública, Murdoch foi obrigado a fechar o jornal, e jamais voltou a ter um vestígio do poder e da influência que tivera na Inglaterra.

Ainda em consequência do escândalo, a Inglaterra se pôs a discutir, prontamente, uma nova regulação da mídia. Os detalhes finais estão sendo elaborados, mas essencialmente foi decretado o fim da auto-regulação por ter se provado pateticamente ineficaz.

No Brasil, não chegamos ainda, neste terreno, aos anos 1930 de Baldwin.

Que presidente brasileiro ousou dizer a barões – e à sociedade, principalmente — as verdades que Baldwin disse?

Diversos ocupantes do Planalto não apenas silenciam como patrocinam os barões com o Bolsa Imprensa, o dinheiro público farto e constante que sempre abastece as grandes empresas na forma de publicidade federal.

É esse estado de coisas que a mídia está defendendo mais uma vez, com o caso do Charlie – e não, não e ainda não a “liberdade de expressão”.


 *Jornalista, fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo (DCM).

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Do Estado, do Direito e da Política: reflexões

Os conceitos de Estado, de Direito e de Política se encontram tão profundamente interligados que não se pode com proveito analisá-los de forma separada. Abaixo, uma aula didática do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães.

Márcia Kalume/Agência Senado
Introdução

Os conceitos de Estado, de Direito e de Política muitas vezes, em teoria, são apresentados e discutidos de forma distinta. Em realidade, se encontram tão profundamente interligados que não se pode com proveito analisá-los de forma separada.

Não há Direito sem Estado, pois a aceitação e a observância das normas jurídicas e sua eventual sanção em caso de descumprimento dependem da existência e da força do Estado que se expressam através de suas agências, entre elas e muito em especial sua polícia. A afirmação de que não há Direito sem Estado não significa negar a existência de direitos humanos inalienáveis. Todavia, somente a luta política pela consagração desses direitos e pelo seu reconhecimento pela legislação e pelo Estado é que permite impor sua observância.

Não há Direito sem Política, pois as normas jurídicas não são elaboradas, executadas e interpretadas em gabinetes acadêmicos a partir de conceitos e de estruturas lógicas cartesianas, mas, sim, em processos conflituosos de disputa de interesses no seio da sociedade e dos organismos do Estado, ainda que cada grupo de interesses conte nestes processos com o auxílio precioso de seus juristas para melhor articular a defesa de seus pontos de vista.

Não há Estado sem Política, pois os dirigentes das distintas agências do Estado, isto é das múltiplas agencias que compõem os seus três Poderes -  Legislativo, Executivo e Judiciário - são escolhidos através de processos políticos, mesmo quando esses processos são disfarçados como procedimentos de aparência tecnocrática, de reduzida transparência e nenhuma participação popular, como ocorre em regimes ditatoriais.

Há uma tendência em certas áreas de estudos acadêmicos e de certos autores a se estabelecer uma distinção e uma separação entre Sociedade Civil e Estado, entre Economia e Estado. A Sociedade Civil é apresentada com uma aura e uma natureza inerentemente boa, um lugar ideal onde os cidadãos, iguais e livres, conviveriam em harmonia se não fora pela existência do Estado, ente maléfico e autoritário que perturba e impede o desabrochar da sociedade civil. A Economia é representada como um espaço livre, dinâmico e criativo, onde empresários, capitalistas e investidores são responsáveis pelo progresso e pela prosperidade de todos enquanto que o Estado aparece como uma entidade intervencionista, ineficiente, corrupta e corruptora.

Todavia, não existe Sociedade Civil sem Estado, mesmo quando este aparece como instrumento de um regime ditatorial ou autoritário, pois sem o Estado e sem normas jurídicas, a sociedade seria tão somente um emaranhado confuso de lutas violentas de interesses. A não ser nos territórios coloniais, onde as instituições do Estado colonial aparecem como criaturas da potência estrangeira, alheia e opressora da sociedade local, se pode falar de separação entre Sociedade Civil e Estado.

Por outro lado, não há Economia sem Estado, pois são as normas jurídicas que regulam as atividades econômicas e que, através das agências do Estado, garantem a observação das relações entre trabalho e capital (lato sensu), qualquer que seja o sistema econômico de uma determinada sociedade: agrária primitiva, antiga, feudal, capitalista, socialista ou comunista.

Hoje há uma tendência a considerar que a expressão mais moderna da Sociedade Civil seriam as organizações não governamentais, que representariam melhor os interesses do povo, principalmente em Estados em que as classes hegemônicas são conservadoras e opressoras. Todavia, em muitas circunstâncias, as organizações não governamentais que atuam em um país, em especial quando é ele subdesenvolvido, representam em realidade interesses particulares e estrangeiros e estão longe de representar a sociedade civil. De toda forma, não têm essas organizações representatividade e legitimidade já que seus integrantes se auto-escolheram, e assim é de estranhar e de preocupar a tendência atual de incorporar representantes de ONGs em organismos do Estado.

Ao tratar dos temas do Estado, do Direito, da Política, da Sociedade e da Economia há sempre uma certa repetição de ideias e de argumentos, devido à sua estreita interelação, pelo que me penitencio.