quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Charles Fourier no Brasil

Luiz Manfredini

Há dois meses me dedico – sempre que a áspera luta pela sobrevivência me permite – a um novo romance, desta vez sobre o médico francês Jean Maurice Faivre, que aportou no Brasil em fins de 1826 e, entre 1847 e 1858, quando morreu, tentou criar na selva paranaense uma colônia influenciada pelo socialismo utópico do também francês Charles Fourier. Não foi a única tentativa de trazer ao Brasil um projeto fourierista. Seis anos antes, em 1841, outro francês e igualmente médico, Benoit Jules Mure (introdutor da homeopatia no Brasil), criou a Colônia Industrial do Saí – também conhecida como o Falanstério do Saí – nas margens da baía de Babitonga, no norte catarinense.

Foram as duas únicas iniciativas sob influência fourierista que se tem notícia no Brasil. A Colônia Cecília, instalada em Palmeira, no Paraná, nos anos 1890, pelo italiano Giovani Rossi, estava mais ligada ao anarquismo. Todas elas faliram enquanto projetos utópicos, da mesma forma que fracassaram as mais de 70 colônias desse tipo implantadas nos Estados Unidos ao longo do século XIX.

 A utopia socialista daqueles precursores (com destaque para os franceses Saint-Simon e Charles Fourier e o inglês Robert Owen) que, logo após a revolução francesa, se desencantaram com os efeitos deletérios do capitalismo liberal sobre as massas de trabalhadores explorados e empobrecidos, era generosa e, de certo modo, visionária. Buscava uma interpretação totalizante do mundo – e, por decorrência, um projeto societário - capaz de livrar a humanidade das iniquidades que a pervertiam.

Fourier abominava o comércio, segundo ele fonte primordial da mesquinhez da civilização, e imaginava a solução dos problemas econômicos e sociais como resultado da harmonização das 12 paixões que, a seu ver, movem o ser humano. Paixões sensoriais, afetivas, paixões pela ordem e pela harmonia e também pela variação e pela mudança (a paixão borboleteante). Tal harmonização se daria no falanstério, unidade isolada do contágio da civilização, onde viveriam 1.600 pessoas sob um regime de propriedade privada limitada pela repartição igualitária dos benefícios da produção realizada coletivamente. Fourier imaginava que, a partir desses falanstérios, seria possível modificar radicalmente as estruturas básicas da vida humana, instalando-se a “sociedade harmoniosa”.

 Mas se cabiam bem na mente privilegiada dos seus criadores, tais doutrinas que, mais tarde, Marx e Engels viriam a definir como “socialismo utópico”, pouco combinavam com a realidade, pois desligadas das circunstâncias socioeconômicas e histórico-culturais das sociedades em que pretenderam se implantar. Daí a razão do seu fracasso.

 Fourierismo na selva paranaense

Nascido em 1795 num vilarejo do Jura, a montanhosa fronteira da França com a Suíça, e formado pela Faculdade de Medicina de Paris em 1825, Jean Maurice Faivre chegou ao Brasil em fins de 1826. No país recém-independente, logo seria nomeado para o Hospital Militar da Corte. Três anos depois estava entre os cinco fundadores da Academia Imperial de Medicina. No final da década de 1840, valeu-se de suas relações na corte, sobretudo da amizade com a Imperatriz Teresa Cristina, de quem foi médico, para financiar, ao menos em parte, uma espécie de falanstério que fundou em 1847 no interior da então Quinta Comarca da Província de São Paulo, hoje Estado do Paraná. Era a Colônia Teresa, nas margens do rio Ivaí, inicialmente composta por 25 famílias que o médico – e agora colonizador – recrutou na França.

 A despeito de servir a alguns objetivos importantes do império, como a ocupação da fronteira oeste, a catequese de índios e estudos sobre a navegabilidade do rio Ivaí com vistas à ligação fluvial com a Província de Mato Grosso, a colônia de Faivre destacou-se pelo regime social e econômico sob o qual foi criada. Seguindo, grosso modo, o ideário fourierista, que conhecera em Paris, ainda como estudante, Faivre imaginou que se refugiando na selva, junto com seus aderentes, desenvolvendo vida livre e igualitária, estaria a salvo das iniquidades – sobretudo morais - que haviam assolado o mundo das cidades.

Na colônia, onde proibiu a escravidão 40 anos antes de sua abolição no Brasil, distribuiu terras gratuitamente aos membros da comunidade, aos quais já havia oferecido dinheiro para pagarem suas dívidas no Jura e se sustentarem nos dois primeiros anos da colônia. As despesas do trabalho e da vida social eram divididas e, igualmente, os lucros. A colônia apresentou certo desenvolvimento: produziu aguardente e rapadura, construiu uma olaria e desenvolveu uma agricultura de subsistência. Mas logo a maioria dos franceses que trouxera o abandonou. O isolamento da colônia e outros fatores apressaram sua decadência. Em 1858 Faivre morreu tragado por febre traiçoeira sem ver realizados seus sonhos.

Para o historiador paranaense Ermelino Agostinho de Leão, presidente da Província entre 1864 e 1875, Faivre visava “estabelecer no sertão ínvio um núcleo de população que, obedecendo a novos princípios sociais e econômicos, conseguisse implantar um regime de franca felicidade. Visava ensaiar uma sociedade despida de ambição monetária, apoiada no princípio da solidariedade humana, reformando os abusos dos centros industrialistas que começavam a imperar”.

Ainda Ermelino de Leão: “Sua doutrina socialista, respeitando os vínculos sociais da família e da religião e praticando o comunismo sem as extremas doutrinas anarquistas que visam o destruir para reconstruir somente sob o ponto de vista econômico, tendia a criar um sodalício igualitário, sem escalas sociais criadas pelos bens de fortuna”.
E mais: “Suprimida a riqueza individual, distribuída a produção coletiva de conformidade com as necessidades de cada indivíduo, nivelados todos, pensava o humanitário médico que a regeneração humana estaria implantada e que, em vez das rudes lutas econômicas, ao serviço de ambições, desenvolvendo-se em uma série de atritos e conflitos, dos quais resultavam vencedores e vencidos, imperaria a solidariedade, o amor, o altruísmo a bafejar de venturas no núcleo social que praticasse a sonhada reforma. Para ele, o dinheiro era o inimigo capital da felicidade humana”.

A trajetória de 63 anos da vida de Jean Maurice Faivre mostra-se como emblemática de algo que marcou o século XIX, ou seja, a busca por alternativas civilizatórias para a sociedade que superassem as iniquidades do capitalismo. O ponto alto dessa busca deu-se com a formulação do marxismo. Mas até que se chegasse a ele, sensíveis corações e mentes repletos de indignação e generosidade moveram-se, muitos obsessivamente, em direção, sobretudo, da justiça social. Foi um século de problemas e soluções para a sociedade humana, que o bom Faivre, a seu modo e nas fronteiras das suas limitações, procurou viver em plenitude. Convenhamos, bom tema para um romance-histórico.











 

 

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