domingo, 5 de dezembro de 2010

Cuba e a hora da mudança

Atilio Borón

Em Cuba se está efetivando um grande debate sobre o futuro econômico da ilha. Entre os cubanos se fez presente a convicção de que o atual sistema econômico, inspirado no modelo soviético de planejamento ultra-centralizado, encontra-se exaurido. Como advertiram Fidel e Raúl, sua permanência compromete a sobrevivência da Revolução. Se se quer salvá-la será necessário abandonar um sistema de gestão macroeconômica que, de forma clara, já passou a melhor vida.

A experiência histórica tem mostrado que a irracionalidade e desperdício dos mercados podem ocorrer em uma economia totalmente controlada pelos planejadores estatais, que não estão a salvo de cometer erros grosseiros, que produzem irracionalidades e desperdícios que afetam o bem-estar da população.

Exemplos: em um país com um déficit habitacional tão grave como Cuba, a agência estatal encarregada das construções tem registrado 8 mil pedreiros e 12 mil pessoas dedicadas à segurança e guarda dos depósitos das empresas de construção do Estado.

Ou que os relatórios oficiais revelem que 50% da área agrícola da ilha não está sendo cultivada, em um país que deve importar entre 70 e 80% dos alimentos que consome. Ou que quase um terço da safra é perdida devido a problemas de coordenação entre os produtores (sejam eles agências governamentais, cooperativas agrícolas ou outras empresas), as empresas de armazenagem e seleção e os serviços de transporte do Estado, que devem levar as colheitas até os grandes centros de consumo.

Ou que as atividades, como salões de cabeleireiro e beleza, são empresas estatais — em que página do Capital, Marx recomenda isso? — nas quais os trabalhadores recebam todos os equipamentos e materiais para fazer o seu trabalho e cobram um salário, embora cobrem de seus clientes dez vezes a mais do preço estabelecido oficialmente, fixado a décadas atrás, e sem pagar um centavo de impostos.

Estes são alguns exemplos que conversando com os amigos cubanos se multiplicam ad infinitum. Mas, levantam uma questão de importância prática e também teórica: o projeto socialista é realizado ao conseguir-se a total estatização da economia? A resposta é um estridente não. Se na União Soviética (que tinha apenas como um precursor a heróica Comuna de Paris), nas condições específicas de seu tempo, não houve alternativa senão promover a estatização completa da economia, nada indica que nas condições atuais se deva agir da mesma forma.

Tal como com perspicácia anotara Rosa Luxemburgo a respeito exatamente do caso soviético, não há razão para fazer dessa necessidade, uma virtude. E se a estatização total e o planejamento ultra centralizado pode ter sido necessário - e até mesmo virtuoso -, em seu momento, para tornar possível que, em um período de quarenta anos, a velha Rússia, o país mais atrasado da Europa, pudesse ser capaz de derrotar o exército nazista e assumir a liderança na corrida espacial, hoje não o é.

Expresso em termos do marxismo clássico, o desenvolvimento das forças produtivas decretou a obsolescência das formas e da intervenção estatal, que eficazes no passado, não têm qualquer possibilidade de controlar a dinâmica dos processos de produção contemporânea, decisivamente moldados pela terceira revolução industrial.

Cuba entra em um processo de mudança e atualização do socialismo. Os primeiros esboços do projeto, um documento de vinte páginas publicado como suplemento especial do Granma e do Juventud Rebelde, foi distribuído para a população maciçamente. A tiragem de 500 mil exemplares foi imediatamente adquirida pela população, convidada várias vezes a ler, discutir e enviar suas propostas. Nova enorme tiragem está a caminho, porque o desejo de participação é enorme.

O documento será analisado criticamente por todas as organizações sociais, sem distinção: do Partido Comunista até os sindicatos e associações de todos os tipos que existem na ilha. Por isso, estão equivocados os que se iludem que a introdução de reformas inicie um indecoroso — e suícida — retorno ao capitalismo. Nada disso: o que tentaram fazer é nada mais e nada menos do que realizar reformas socialistas que o fortalecimento do controle social, ou seja, o controle popular dos processos de produção e distribuição de riqueza.

O socialismo, bem entendido, é a socialização da economia e do poder, não sua estatização. Mas, para socializar é necessário primeiro produzir, pois, caso contrário, não há nada para se dividir.

Portanto, trata-se de reformas que aprofundam o socialismo, e que nao têm nada haver com as que foram implantadas na América Latina desde os anos oitenta.

Seria óbvio dizer que o caminho a percorrer pela Revolução Cubana não será fácil e está cheia de perigos. Às dificuldades inerentes a qualquer transição são adicionados as derivadas do infame bloqueio dos EUA (e mantido pelo Prêmio Nobel da Paz, Barack Obama), o bombardeio constante da mídia e as pressões sobre a ilha, procurarão por todos os meios fazer com as reformas socialistas degenerem em uma reforma econômica capitalista.

O cerne da questão está na bússola política, a orientação que terão estes processos de mudança. E o povo e o governo de Cuba dispõem de uma bússola muito boa, provada por mais de meio século, e eles sabem muito bem o que devem fazer para salvar o socialismo da ameaça mortal que representa o esgotamento de seu modelo econômico atual. E também sabem que se algo liquidar as conquistas históricas da revolução, seria varredura de um acidente vascular cerebral, que re-mercantilizaria os seus direitos e os converteriam em mercadorias. Ou seja, a reintrodução do capitalismo. E ninguém quer que isso aconteça.

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