Capacete, fuzil e sonhos: a epopéia de Salvador Allende não nos abandona
Há exatos 37 anos, a morte trágica do Presidente chileno Salvador Allende, lutando no Palácio de La Moneda contra as hordas fascistas do soturno General Augusto Pinochet, encerrava com heroísmo e sangue uma singular tentativa de caminho para o socialismo e, ao mesmo tempo, inaugurava uma das ditaduras mais cruentas da América Latina.
Eleito em 1970, após três tentativas de chegar à Presidência, o médico e líder socialista Salvador Allende Gossens liderou o governo da Unidade Popular, incluindo socialistas, comunistas e outros segmentos da esquerda chilena. Partidário da possibilidade de instaurar o socialismo a partir das urnas, no contexto mesmo da democracia burguesa, Allende conduziu seu governo por um caminho que não considerava nem reformista, nem social-democrata, mas de democratização radical de todas as esferas da vida social. Era o que entendia como o grande eixo da transformação, o rumo para resolver o complexo e estratégico problema do poder político, o caminho para o socialismo chileno que, num discurso de maio de 1971, definiu como “libertário, democrático e pluripartidário”.
Assim, expropriou terras e iniciou a socialização de importantes empresas privadas, que passaram à direção de cooperativas de trabalhadores, nacionalizou as minas cobre, sem o pagamento de indenizações às empresas norte-americanas que até então detinham o controle dessa área estratégica, subsidiou parte dos serviços básicos e apoiou organizações populares da cidade e do campo em suas demandas de participação. Em resposta, o povo o apoiou. Nas eleições parlamentares de 1971 e nas municipais de 1973, os partidos integrantes da Unidade Popular cresceram em votos. Mas a direita também respondeu aos avanços sociais do governo com uma oposição cada vez mais virulenta.
Conspiração
Aliás, a reação conservadora havia se instalado antes mesmo de Allende assumir a Presidência. A pequena vantagem do socialista diante dos outros concorrentes conduziu a decisão para o Congresso. Somente após exaustivas negociações, sobretudo com a democracia-cristã do Presidente Eduardo Frei, é que Allende foi proclamado Presidente da República, em 24 de outubro de 1970. A direita tentara evitar a eleição com o expediente de sempre, unindo estardalhaço e tramas golpistas. Um comando de sua ala mais extremista assassinou o comandante do Exército, General René Schneider, decidido partidário da subordinação do poder militar ao civil. Objetivo: instalar o medo e a insegurança no país, sobretudo em suas camadas médias, tumultuar o processo eleitoral, criar pretexto para intervenções. Não conseguiu. Mas persistiu.
Em duas frentes a direita cumpriria seu destino. Na legal, tentando cercar o governo no parlamento; na ilegal, desencadeando sabotagens (dinamitou torres de alta tensão e linhas férreas), boicotes, desabastecimento dos gêneros de primeira necessidade. Também o governo estadunidense cumpria seu destino de permanente inspiração reacionária e golpista, participando ativamente – inclusive com recursos financeiros – do complô direitista contra a Unidade Popular. Já em outubro de 1970, portanto antes mesmo da posse de Allende, o embaixador em Santiago, E. Korry, garantia em carta a Eduardo Frei: "Deve saber que não permitiremos que chegue ao Chile um parafuso, nem uma porca... Enquanto Allende permanecer no poder, faremos tudo ao nosso alcance para condenar o Chile e os chilenos às maiores privações e misérias...".
Bloqueado pelos Estados Unidos e sob rigoroso boicote da direita, o governo via a produção se bens ser drasticamente reduzida e ainda enfrentava uma corrosiva alta inflacionária. Criou-se uma situação de desabastecimento que gerou imensas mobilizações a favor e contra o governo. A famosa greve geral dos transportes, organizada e financiada pela burguesia chilena, com apoio irrestrito da CIA, praticamente inviabilizou o trânsito de bens pelo país. Por seu turno, setores mais à esquerda da Unidade Popular radicalizavam seu discurso, chegando a propor a Allende o fechamento do Congresso e o uso de medidas excepcionais para poder governar. O país estava cindido. A luta de classes ganhava as ruas.
Mas o Presidente resolveu negociar, convidando líderes militares para compor o gabinete e oferecendo a realização de um plebiscito em que os chilenos optariam por continuar ou não o regime, podendo, inclusive, votar pela convocação de novas eleições. Mas nada disso arrefeceu a crise. O lobo faminto da direita exigia a cabeça de Allende que, diante das intransigências da oposição, decidiu cercar legalmente alguns dos seus setores mais radicais. Ao mesmo tempo, enfrentava grupos de esquerda que lhe cobravam rupturas. Os impasses se sucediam.
Golpe à vista
Num certo momento, a também oposicionista democracia-cristã aliou-se à direita para preparar o golpe de estado. Uma primeira tentativa ocorreu em junho de 1973, o chamado El Tancazo, quando um regimento de blindados de Santiago ergueu-se contra o governo, sendo, no entanto, contido. Finalmente, em 11 de setembro, sob o comando do General Augusto Pinochet, as forças armadas cercaram o Palácio de La Moneda. Allende rejeitou o ultimato da rendiçã.. O palácio foi bombardeado. O velho socialista, então com 65 anos, mandou que os funcionários deixassem a sede do governo. E lá se manteve na companhia de alguns correligionários mais próximos, em meio aos balaços de fuzis, metralhadoras e canhões do fascismo e ao ruído ensurdecedor dos raides, à poeira vulcânica das explosões. As 9h20min daquela manhã de 11 de setembro de 1973, em que a sorte do Chile estava sendo dramaticamente lançada, Allende se aproveitou da rádio Magallanes, a única ainda ao seu alcance, para transmitir ao povo chileno a mensagem derradeira. Sua voz serena e firme impôs-se aos ruídos dos bombardeios, das correrias e gritos da resistência em palácio:
"Trabalhadores da minha pátria: tenho fé no Chile e no seu destino. Este momento cinzento e amargo, onde a traição pretende se impor, será superado. Sigam sabendo que muito mais cedo do que tarde de novo se abrirão as grandes avenidas por onde passará o homem [livre] digno que quer construir uma sociedade melhor...”.
E lá morreu, vestindo um capacete militar e portando o fuzil que lhe fora presenteado por Fidel Castro. Vitorioso, o golpe arrastaria o Chile para as sombras do terror. Até sucumbir, 16 anos depois, a ditadura pinochetista assassinaria mais de três mil chilenos por razões políticas e mandaria outros dez mil aos cárceres, à tortura e ao exílio.
O corpo de Salvador Allende foi depultado num túmulo modesto do cemitério de Viña del Mar, no litoral, sem sequer uma placa que o identificasse. Ali repousou por quase 18 anos. Somente em 1990, por ordem do Presidente Patricio Aylwin, o primeiro mandatário chileno da era democrática pós Pinochet, recebeu um novo funeral, desta vez no Cemitério Geral de Santiago, com as devidas honras de chefe de Estado. Em 2000, Allende ganhou uma grande estátua de corpo inteiro diante do restaurado palácio de La Moneda.
Exames e conclusões
Fica para os cientistas políticos e historiadores colocar sob os crivos da ciência os amplos e profundos significados da obstinada e heróica tentativa de Salvador Allende de transitar para o socialismo sem as necessárias rupturas estruturais. Houve, talvez, ilusões demais, num mundo sob o tacão da Guerra Fria e numa América Latina aprisionada por ditaduras militares. Talvez alguns tenham sido voluntaristas demais, alheios à correlação de forças. Ou, quem sabe, tímidos demais diante da luta de classes que avançava, virulenta, pelas ruas. Que o digam os estudiosos. De todo modo, foram todos heróicos combatentes.
O mundo mudou nesses quase 40 anos. O capitalismo derrotou as primeiras experiências socialistas do século XX. A América Latina também mudou, varreu os regimes militares e, após sofrer as agruras do neoliberalismo, voltou-se quase toda ela para a esquerda. Há países, como a Venezuela e a Bolívia, cujos governos eleitos reivindicam a construção do socialismo a partir das superestruturas políticas e ideológicas do capitalismo. Experiências a serem observadas, essas sob a liderança de Chavez e Evo.
Mas, repito: aos estudiosos a missão do exame e das conclusões. Aqui, modesto escrita, reportei o que assisti, jovem e ainda que à distância, exultando com os chilenos pela vitória de Allende, amargando com eles a crônica perversa de sua derrota.
Leia a seguir a derradeira mensagem de Salvador Allende aos chilenos, na manhã de 11 de setembro de 1973, quando o palácio de La Moneda já estava sob o bombardeio dos fascistas.
Compatriotas:
Esta será seguramente a última oportunidade em que poderei dirigir-me a vocês. A aviação bombardeou as antenas da Radio Portales e Radio Corporación. Minhas palavras não têm amargura, mas decepção, e elas serão o castigo moral para os que traíram o juramento feito: soldados de Chile, comandantes-em-chefe titulares e mais o almirante Merino, que se autodesignou, e o senhor Mendoza, esse general rasteiro, que ontem me manifestara sua fidelidade e lealdade ao governo.
Frente a estes fatos, só me cabe dizer aos trabalhadores: não vou renunciar!
Colocado neste transe histórico, pagarei com minha vida a lealdade do povo, e digo-lhes que tenho certeza que a semente que entregamos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser apagada definitivamente. Eles têm a força, mas não se detêm processos sociais pelo crime e pela força. A História é nossa, ela é feita pelos povos.
Me dirijo ao homem chileno, operário, camponês, intelectual, àqueles que serão perseguidos porque em nosso país o fascismo já se faz presente há algum tempo em atentados terroristas, sabotagens de estradas de ferro e pontes, oleodutos e gasodutos.
Frente ao silêncio dos que tinham a obrigação ... [interrupção momentânea da transmissão da Radio Magallanes] - ... a que estavam submetidos. A História os julgará.
Seguramente, Radio Magallanes será calada e o metal tranqüilo da minha voz não chegará mais a vocês... Não importa ... Não importa, vocês seguirão me ouvindo, estarei sempre junto de vocês, pelo menos minha lembrança será de um homem digno, leal à lealdade dos trabalhadores.
O povo deve se defender, mas não se sacrificar. Não deve deixar-se arrasar nem crivar de balas, mas tampouco pode se deixar humilhar.
Trabalhadores da minha pátria: tenho fé no Chile e no seu destino. Este momento cinzento e amargo, onde a traição pretende se impor, será superado. Sigam sabendo que muito mais cedo do que tarde de novo se abrirão as grandes avenidas por onde passará o homem [livre] digno que quer construir uma sociedade melhor...
Viva Chile, viva o povo, vivam os trabalhadores... Estas são minhas últimas palavras ... Tenho certeza de que meu sacrifício não será em vão, tenho certeza de que pelo menos será uma lição moral que castigará a felonia, a covardia e a traição....
Maravilhoso seu texto, companheiro Manfredini.
ResponderExcluirImportantíssima lembrança na história da resistência da esquerda frente aos renovados golpes do fascismo conservador nas suas múltiplas vertentes e versões.
Avante, sempre!
Andrea Caldas