domingo, 10 de março de 2013

O coronel, os intelectuais e a cadeia


Luiz Manfredini

Comentou-se, à época – março de 1978 – que o general Ernesto Geisel, então presidente da República, passou mal (com vômito e tontura) ao se deparar, no Jornal do Brasil, com as ferinas críticas que lhe foram endereçadas por um subordinado, o tenente-coronel Tarcísio Nunes Ferreira. A informação jamais foi comprovada, mas inegável que a entrevista do militar – ácida contra Geisel, contra o que considerava desvios do “movimento militar de 1964” e a favor da abertura do regime – causou, digamos, certo frisson na caserna.

Não por menos: pela primeira vez desde o golpe um militar da ativa criticava abertamente o “status quo”. E não um militar qualquer. Este comandava o 13o Batalhão de Infantaria Blindada, a mais poderosa unidade da 5a Região Militar (Paraná e Santa Catarina), com sede em Ponta Grossa, a pouco mais de 100 quilômetros de Curitiba.

A entrevista de página inteira realizada por mim, então repórter da sucursal paranaense do Jornal do Brasil, e publicada há exatos 35 anos, em 11 de março de 1978, desenvolvia o que o coronel já defendera para cerca de 200 membros do Lions Club de Ponta Grossa uma semana antes. A palestra, que valeu a Tarcísio prisão domiciliar de dois dias, inaugurou o curto período de três semanas em que o País se agitou a partir de Curitiba, pois à palestra e à entrevista sucederam nova detenção do militar, dessa feita de 30 dias, o sequestro de uma professora por um grupo paramilitar e a prisão de 11 intelectuais pela Polícia Federal, acusados de ensinar marxismo-leninismo a crianças em duas pré-escolas. Sobretudo estas prisões provocaram grande mobilização da opinião pública, não só na capital paranaense, como em todo o Brasil, com expressiva repercussão internacional.

Os episódios daquele março turbulento em Curitiba marcaram um capítulo a mais, talvez um capítulo decisivo da conflagração entre duas alas do regime militar – conhecido então como “o sistema” –, divididas entre os defensores da “distensão lenta, gradual e segura” do presidente Geisel e os que se opunham a ela, a chamada “linha dura”. Meses antes, em outubro de 1977, os duros haviam sofrido importante revés com a demissão do general Sylvio Frota do Ministério do Exército.

Fiel, mas crítico

Aos 47 anos na época, 26 dos quais dedicados ao Exército, o Coronel Tarcísio Nunes Ferreira deixou clara sua “fidelidade aos ideais do movimento de 31 de março de 1964”, mas criticou o que considerava sua deformação: “Nós saímos de um processo totalitário que se tentava, através do governo, pela desordem, para um processo totalitário feito pelo governo, pelo excesso de ordem”. Para ele, “numa sociedade o que é preciso é a harmonia, e não a ordem”.

Na longa entrevista, o coronel defendeu a imediata abertura democrática no país, com pluripartidarismo (mas sem a participação do Partido Comunista), quebra dos instrumentos de exceção dos quais a ditadura ainda se valia, anistia e até mesmo uma assembleia constituinte. E endereçou ao presidente Ernesto Geisel críticas corrosivas. Opôs-se ao seu conceito de democracia relativa e aos poderes imperiais da Presidência.

Mas certamente o que mais repercutiu foi a exortação: “É preciso que, de alguma forma, os militares quebrem o silêncio” para defender o que Tarcísio considerava pensamento hegemônico nas forças armadas, ou seja, a abertura democrática. Mais grave foi o militar sustentar que “há momentos em que se justifica a quebra da disciplina em nome da legitimidade”, principalmente quando “estão lançando nos nossos ombros a culpa de todos os erros que estão aí patentes”. Era incitação à rebeldia militar, logo naqueles tempos bicudos.

Nunca se soube o quanto Tarcísio Nunes Ferreira estava ligado a outros setores militares e civis. Ao longo do tempo, ele atribuiria sua entrevista a iniciativa meramente pessoal. Mas sempre foi intrigante o fato dele praticamente escolher o Jornal do Brasil para conceder a entrevista, combinando inclusive a data da publicação. Sobre um móvel da sala de sua casa, observei um punhado de bilhetes aéreos. Na ocasião o coronel negou que fizesse viagens pelo Brasil. Mesmo assim, alguns analistas o viram simpático à candidatura presidencial do ex-governador de Minas Gerais Magalhães Pinto, tido como o líder civil do golpe de 1964. Três meses depois da entrevista, um dos mais entusiastas apoiadores do coronel, o ex-ministro Ivo Arzua Pereira, aderia à Frente Nacional de Redemocratização, capitaneada por Magalhães e Tancredo Neves. A Frente desembocaria na candidatura do general Euler Bentes Monteiro contra a do também general João Batista Figueiredo, patrocinada por Geisel.

Sequestro e prisões

No final da tarde de sexta-feira, 17, o coronel já cumpria, no 5o Grupamento de Artilharia de Campanha, no bairro do Boqueirão, a pena de 30 dias de detenção que recebera por conceder a entrevista, quando paramilitares sequestraram a jornalista e professora Juracilda Veiga na saída do colégio Cônego Camargo, onde lecionava. Treze horas depois, no amanhecer de sábado, a Polícia Federal prendia 11 pessoas ligadas às escolas Oca e Oficina, de educação infantil. Além de mim, estavam presos o também jornalista Walmor Marcelino, o advogado Edésio Passos, o engenheiro Paulo Sá Brito, os publicitários Reinoldo e Sueli Atem, o professor Léo Kessel, a pedagoga Silvia Magalhães e as sociólogas Bernadete Zaneti Sá Brito, Lígia Mendonça e Ana Lange. Segundo nota oficial da PF, “as escolas vinham doutrinando crianças dentro de princípios marxistas, desenvolvendo-lhes uma visão materialista e dialética do mundo, incutindo nelas a negação de valores como a religião, a família e a tradição histórica”.

É provável que os acontecimentos não tenham sido tramados intencionalmente, mas trocaram influências recíprocas. Os detidos no caso das pré-escolas foram escolhidos a dedo entre aqueles com mais extensos antecedentes na luta contra a ditadura. No meu caso, por exemplo, eu havia tido com a escola Oficina uma relação meramente pontual anos antes, mas meu prontuário na polícia política e o fato de haver entrevistado o coronel de Ponta Grossa, ajudavam os duros do regime e comporem seu raciocínio: a ditadura não poderia retroceder, pois os subversivos – como eram chamados, na época, os opositores mais firmes – tanto se mantinham atuantes que agora se infiltravam até em pré-escolas e açulavam militares contra seus superiores.

Mas ocorreu o que, para a “linha dura”, era inesperado: a instantânea, larga e intensa reação da sociedade. O sequestro de Juracilda Veiga, embora sem relação aparente com as prisões, colocou no cenário a Igreja Católica, pois a professora e jornalista era militante das comunidades eclesiais de base. Não podendo solidarizar-se apenas com Juracilda, o clero local esteve à frente das mobilizações por todos. Nas missas celebradas no domingo, 19, nas mais de cem paróquias de Curitiba, foi lida uma carta-aberta à população assinada pela Comissão de Justiça e Paz do Paraná e outras 34 organizações da sociedade civil, reunidas em assembleia permanente na Cúria Metropolitana. A carta manifestava preocupação com o “clima de terror e insegurança”. Exigia a imediata libertação dos presos, esclarecimentos sobre o sequestro de Juracilda Veiga e “apuração de atos ilegais do clandestino Comando de Caça aos Comunistas”.

Protestos com humor

As prisões em Curitiba ecoaram por todo o Brasil, provocando condenações generalizadas. A imprensa, cujos patrões naquele momento já começavam a se descolar do projeto dos militares, que eles apoiaram em 1964, repercutiu à larga os acontecimentos. Curitiba ficou coalhada de correspondentes dos jornais nacional. A inglesa Patrícia Feeney, coordenadora do Departamento de Pesquisa Internacional para a América Latina da Anistia Internacional, aportou na cidade para melhor acompanhar os fatos. Mais de oito mil telegramas chegaram do exterior e de vários estados à sede da Polícia Federal, pedindo liberdade para os detidos.

Além da violência, o episódio continha também boa dose de ridículo. A alegação de que os 11 detidos ensinavam marxismo-leninismo às crianças das duas pré-escolas foi logo incorporada ao anedotário nacional. Luiz Fernando Veríssimo produziu uma hilária “cartilha marxista” que estaria sendo aplicada aos meninos e meninas de Curitiba. Em sua coluna do Jornal do Brasil, o poeta Carlos Drumond de Andrade noticiou declarações do garoto Fifico, de três anos e meio de idade, segundo as quais sua professora trocou o livro “Circo de Coelhinhos”, do escritor Marques Rebelo, pelo “O Capital”, de Karl Marx. “Marques e Marx, tudo é a mesma coisa”, teria alegado a professora. No mesmo Jornal do Brasil, Carlos Eduardo Novaes em longa crônica intitulada “A subversão infantil”, informou que, nas duas pré-escolas de Curitiba, as aulas começavam com historinhas que poderiam ser “Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Reacionário”, como “A Branca de Neve, Lacaia do Capitalismo, e os Sete Anões Explorados” ou ainda “Pluf, o fantasma do imperialismo”.

Entre humor e protestos políticos, a pressão foi tal que os detidos acabaram sendo soltos já a partir do terceiro dia após as prisões. Uma semana depois, no domingo, 26, os três últimos deixaram a cela: eu, o também jornalista Walmor Marcelino e o advogado Edésio Passos. Juracilda Veiga permaneceu 24 horas nas mãos dos sequestradores, sempre encapuzada, sofrendo choques elétricos e ameaças em dez 10 longos interrogatórios. O coronel Tarcísio Nunes Ferreira deixou o 5o Grupamento de Artilharia de Campanha em meados de abril, sendo transferido para uma função burocrática em Recife, a do serviço militar. Em 1995, o jornalista, escritor e cineasta Valencio Xavier narrou as prisões no premiado vídeo-documentário “Os Onze de Curitiba – Todos nós”.

O revés na capital paranaense, no entanto, não impediu que a extrema-direita voltasse a agir. Explodiu bombas em bancas de jornal de várias capitais, nas sedes da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no Rio, ameaçou, sequestrou e espancou lideranças da oposição e, em 31 de abril de 1981, uma bomba detonou por acidente no colo de um dos terroristas – um capitão do Exército – antes que ele a armasse nas instalações do Riocentro, onde cerca de 20 mil pessoas comemoravam o 1º de Maio.

Mas as ações da extrema-direita – a “linha dura” militar e seus aliados civis – não impediram a progressiva decomposição da ditadura, que prosperava já desde meados da década de 1970. O prenúncio da derrocada ocorreu nas eleições de 1974, quando o MDB – o partido de oposição no bipartidarismo consentido pelos militares – derrotou fragorosamente a governista Arena. Para se ter uma ideia, o MDB passou de sete para 20 senadores e de 87 para 165 deputados federais. A sociedade civil começava a se posicionar francamente contra a ditadura, o que se confirmou nas maciças reações à morte do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho, nas dependências do DOI-CODI paulista, em outubro de 1975 e 1976, respectivamente.

Quando o coronel Tarcísio Nunes Ferreira concedeu a entrevista, os estudantes já tratavam de reorganizar a UNE, o que ocorreria em 1979. Exatos dois meses depois dos episódios de Curitiba, a greve dos trabalhadores da Scania, no ABC paulista, marcava o reingresso do movimento operário na cena política brasileira. Despontava ali a liderança do metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. A ditadura já não tinha como manter instrumentos de exceção como o AI-5, afinal revogado em dezembro de 1978. Daí em diante o regime dos militares despencou ladeira abaixo, sem poder resistir à pressão popular. Seguiu-se a anistia, em agosto de 1979, as eleições diretas para governadores, em 1982, o gigantesco movimento das Diretas-Já, em 1984 e, no ano seguinte, a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. A ditadura perdia-se diante da forte oposição no terreno que ela própria criara para se preservar.


 

 

 

 

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O presente e o futuro do comunismo

Domenico Losurdo [*]

Aproxima-se o centenário da grande revolução de Outubro. Como acontece muitas vezes com revoluções, aquela principiada há aproximadamente um século seguiu um percurso completamente imprevisto. Estamos em todo caso na presença de um gigantesco processo de emancipação que modificou a face da Terra e que está bem longe de ter chegado à sua conclusão.

Continuo a julgar correta a visão da “Ideologia Alemã”, segundo a qual o comunismo é sobretudo “o movimento real que abole o atual estado de coisas”. Observemos as mutações que se verificaram no mundo a partir da primeira revolução que se reclamou de Marx e Engels. Antes de Outubro de 1917 não havia democracia, mesmo no Ocidente: era o reino das três grandes discriminações para com as mulheres, as classes subalternas, os povos coloniais e de origem colonial.

Com Fevereiro e Outubro de 1917, a Rússia revolucionária reconheceu às mulheres direitos políticos e ativos e passivos. A República de Weimar (nascida da revolução que explodiu na Alemanha um ano após a revolução de Outubro) tomou o mesmo caminho, seguido pelos Estados Unidos. É certo que na Itália, Alemanha, Áustria e Inglaterra o sufrágio universal (masculino) estava mais ou menos afirmado, mas ficava neutralizado por uma Câmara alta que permanecia o apanágio da nobreza e da grande burguesia.

A discriminação racial apresentava-se sob uma forma dupla: considerados como indignos de se constituírem como Estado nacional independente, os povos coloniais eram submetidos à dominação absoluta das grandes potências.

Num país como os EUA, os afro-americanos eram excluídos dos direitos políticos (e por vezes mesmo dos direitos cívicos). A ultrapassagem da discriminação racial sob estes dois aspectos não pode ser pensada sem o capítulo da história aberto por Outubro de 1917.

O papel desempenhado pelos Partidos Comunistas nas revoluções anticoloniais é notável. E no que se refere aos Estados Unidos? Em Dezembro de 1952, o ministro da Justiça enviava ao Tribunal Supremo, ocupado a discutir a questão da integração nas escolas públicas, uma carta eloquente: “A discriminação racial leva a água ao moinho da propaganda comunista”. O desafio comunista desempenhou um papel essencial igualmente na ultrapassagem do regime da supremacia branca.

Os direitos sociais e econômicos fazem parte da democracia tal como a esquerda a entende. E foi este patriarca do neoliberalismo, Hayek, que denunciou o fato de que a teorização e a presença no Ocidente destes direitos remetiam à influência, por ele considerada nefasta, da “revolução marxista russa”.

Compreende-se portanto que, à atenuação do desafio comunista, corresponda no Ocidente uma restauração. Não se trata só do desmantelamento do Estado social. O peso da riqueza é tão forte que, mesmo nas colunas do New York Times, podem-se ler denúncias considerando que o regime em vigor nos Estados Unidos assemelha-se mais a uma “plutocracia” do que à democracia.

A contrarrevolução é evidente igualmente nos casos do colonialismo, reavaliada pelo teórico da “sociedade aberta”, Karl Popper: “Nós libertamos estes Estados (as antigas colônias) muito apressadamente e de modo demasiado simplista”.

Vejamos, em sentido contrário, o que se passa num país continente que ficou sob a direcção do Partido Comunista. Pondo fim à catástrofe provocada pelas guerras do ópio e a agressão colonialista, a China devolveu a centenas de milhões de pessoas o primeiro dos direitos do homem, a saber, o direito à vida.

O Estado social começa aqui a dar os seus primeiros passos, ao passo que doravante ele é renegado no Ocidente, inclusive no plano teórico.

Mas isto não é tudo: ao reduzir rapidamente seu atraso tecnológico em relação aos países capitalistas mais avançados, a China põe fim à “era de Colombo”, que havia começado com a descoberta-conquista da América e que viu o Ocidente sujeitar o planeta inteiro.

Veem-se criar as condições para frustrar as tentações colonialistas e democratizar as relações internacionais. O declínio da doutrina Monroe, à qual a revolução cubana infligiu pela primeira vez um golpe severo, está lá para confirmar.

Como acontece muitas vezes com revoluções, aquela principiada há aproximadamente um século seguiu um percurso completamente imprevisto. Estamos em todo caso na presença de um gigantesco processo de emancipação que está bem longe de ter chegado à sua conclusão.

[*] Filósofo, professor da Universidade de Urbino, Itália. Texto publicado origianalmente no sítio Resistir.
 

Os serviços de Marina Silva


Luiz Manfredini

Nos anos 90, a direita dispunha de um programa para o Brasil: o programa neoliberal. Beneficiária da atmosfera regressiva criada pela queda do Muro de Berlin e dissolução da União Soviética, no curso de uma ampla crise do socialismo e de um notável avanço do capital, ela sensibilizou o eleitorado brasileiro com suas propostas aparentemente inovadoras de privatizações, Estado mínimo e outros quejandos. E indicou para representá-la um egresso da esquerda, o então senador Fernando Henrique Cardoso, que cumpriu dois mandatos presidenciais. Digamos assim: a direita estava com tudo.

Mas o modelo neoliberal sofreu reveses decisivos no Brasil e no mundo. A partir de 2003 o Governo Lula inaugurou um novo modelo que, a despeito de equívocos e limitações, confrontou-se com o receituário neoliberal, vitaminou o crescimento econômico com justiça social e soberania nacional e, assim, ganhou a alma da maioria dos brasileiros. A Presidente Dilma se elegeu no bojo desse movimento para a esquerda. E a direita ficou sem programa e, portanto, órfã de propostas para o Brasil. Nos últimos anos, amparada em seu vasto poderio midiático, restou-lhe atacar o governo a partir do velho cantochão do moralismo e de pontos isolados que estão longe de se constituírem uma alternativa à plataforma da esquerda.

Mas isto não basta para a direita vislumbrar alguma perspectiva, que não a derrota, nas eleições de 201. Assim, procura construir ou ajudar a construir cenários adicionais que, mesmo indiretamente, a favoreçam. Um desses cenários é o da fragmentação do quadro partidário e de alianças eleitorais, na esperança de evitar a vitória da Presidente Dilma já no primeiro turno, como apontam as pesquisas. Daí a grande mídia privada e mesmo próceres da direita saudarem o lançamento, no dia 16 de fevereiro, em Brasília, do partido da ex-senadora Marina Silva, a tal Rede Sustentabilidade, ou simplesmente Rede.

Marina não dispõe mais dos 20 milhões de votos que auferiu em 2010 em circunstâncias políticas irrepetíveis. Mas seu capital eleitoral – ali pelos 9%, segundo estimam pesquisas atuais - ainda é respeitável. A direita conta com eles para tentar impedir a vitória de Dilma já no primeiro turno. E se esforça para isso, inclusive oferecendo quadros ao novo partido. O deputado federal paulista Walter Feldman, por exemplo, um tucano histórico e sempre muito bem votado, é apontado como um dos fundadores da agremiação de Marina. Claro que não será fácil amealhar, até outubro, as 500 mil adesões necessárias para legalizar o partido, mas a direita certamente vai ajudar.

Mas o partido da ex-senadora pelo Acre, além dos serviços que prestará à direita, ainda que indiretamente, contém singularidades que não passaram desapercebidas. A primeira, nas palavras da própria Marina: "Estamos na época ao paradoxo, nem situação, nem oposição a Dilma. Precisamos de posição”. Nem oposição, nem situação, mas posição? O que é isso? Parece tiradinha de publicitário. E mais: “Nem direita, nem esquerda. Estamos à frente". Mas onde está o partido, em que galáxia? Isso me cheira à senha para o oportunismo, pois numa agremiação que assim se define, cabe todo mundo. Também a afirmação de Marina de que o Rede vai romper com “a lógica de partidos a serviços de pessoas” soa como embuste. Não está a serviço de pessoas, mas só ela é quem aparece.

Não vai o partido de Marina aceitar contribuições de empresas de cigarro, armas, agrotóxicas e bebidas alcoólicas. Mas nada fala a respeito das doações de bancos e empreiteiras. Uns, como o deputado Walter Feldman, falam que a agremiação só aceitará dirigentes e candidatos com ficha limpa, regra que não vale para filiados em geral. Outros, como um dos fundadores, João Paulo Capobianco, asseguram que a legenda vai "coibir a entrada de ficha suja". Ingressa ficha suja ou não? A confusão está precocemente formada, o que não soa estranho a um partido que não possui carta programática, no qual metade dos filiados poderá ter a opinião que desejar, à margem das orientações partidárias.

Tais orientações foram coletadas entre os primeiros aderentes. No evento de lançamento, em Brasília, os participantes – alguns deles se denominam “sonháticos” - relataram sonhos ao microfone ou por escrito. Como notou, em artigo recente, o biólogo e professor Pedro Luiz Teixeira de Camargo, “as ideias eram as mais divergentes possíveis, passando pelo mote ‘mais Joaquim Barbosa, por favor’, até a palavra mágica "amor". Para ele, “a partir do momento em que metade dos filiados não precisa seguir um programa partidário, busca-se o enfraquecimento dos partidos políticos”. E aí está um ponto crucial nessa iniciativa, a primeira que busca desclassificar a instituição partido como instrumento primordial da política. Diz Marina: . "Estamos num processo de desconstrução de que o partido tem monopólio da política, queremos quebrar isso”. É a ação declarada contra os partidos, a tentativa de despolitização da sociedade.

Em seu oportuno artigo, Pedro Luiz Teixeira de Camargo conclui:

“É fundamental mostrar a toda a sociedade a verdadeira faceta de Marina Silva e de sua Rede: servir de legenda para deputados insatisfeitos em seus partidos, garantir um partido para a realização pessoal da ex-senadora e, principalmente: servir de sublegenda para a direita neoliberal. Desgastada devido aos bons governos de Lula e Dilma, a direita tradicional precisa se repaginar, e nada melhor que usar uma ex-militante de esquerda, ainda mais se puderem pintar o tucano de verde, que pode deixar de ser a cor da esperança para passar a ser a cor da preocupação”.

Gelatinoso como é, o partido da ex-senadora mereceu definição antológica do jornalista Cláudio Gonzalez: “Não é um partido, é uma ONG que receberá dinheiro do fundo partidário”. Ou, como afirmou o impagável José Simão, dia desses: a Rede de Marina “é o PSD que não come carne”.











 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Charles Fourier no Brasil

Luiz Manfredini

Há dois meses me dedico – sempre que a áspera luta pela sobrevivência me permite – a um novo romance, desta vez sobre o médico francês Jean Maurice Faivre, que aportou no Brasil em fins de 1826 e, entre 1847 e 1858, quando morreu, tentou criar na selva paranaense uma colônia influenciada pelo socialismo utópico do também francês Charles Fourier. Não foi a única tentativa de trazer ao Brasil um projeto fourierista. Seis anos antes, em 1841, outro francês e igualmente médico, Benoit Jules Mure (introdutor da homeopatia no Brasil), criou a Colônia Industrial do Saí – também conhecida como o Falanstério do Saí – nas margens da baía de Babitonga, no norte catarinense.

Foram as duas únicas iniciativas sob influência fourierista que se tem notícia no Brasil. A Colônia Cecília, instalada em Palmeira, no Paraná, nos anos 1890, pelo italiano Giovani Rossi, estava mais ligada ao anarquismo. Todas elas faliram enquanto projetos utópicos, da mesma forma que fracassaram as mais de 70 colônias desse tipo implantadas nos Estados Unidos ao longo do século XIX.

 A utopia socialista daqueles precursores (com destaque para os franceses Saint-Simon e Charles Fourier e o inglês Robert Owen) que, logo após a revolução francesa, se desencantaram com os efeitos deletérios do capitalismo liberal sobre as massas de trabalhadores explorados e empobrecidos, era generosa e, de certo modo, visionária. Buscava uma interpretação totalizante do mundo – e, por decorrência, um projeto societário - capaz de livrar a humanidade das iniquidades que a pervertiam.

Fourier abominava o comércio, segundo ele fonte primordial da mesquinhez da civilização, e imaginava a solução dos problemas econômicos e sociais como resultado da harmonização das 12 paixões que, a seu ver, movem o ser humano. Paixões sensoriais, afetivas, paixões pela ordem e pela harmonia e também pela variação e pela mudança (a paixão borboleteante). Tal harmonização se daria no falanstério, unidade isolada do contágio da civilização, onde viveriam 1.600 pessoas sob um regime de propriedade privada limitada pela repartição igualitária dos benefícios da produção realizada coletivamente. Fourier imaginava que, a partir desses falanstérios, seria possível modificar radicalmente as estruturas básicas da vida humana, instalando-se a “sociedade harmoniosa”.

 Mas se cabiam bem na mente privilegiada dos seus criadores, tais doutrinas que, mais tarde, Marx e Engels viriam a definir como “socialismo utópico”, pouco combinavam com a realidade, pois desligadas das circunstâncias socioeconômicas e histórico-culturais das sociedades em que pretenderam se implantar. Daí a razão do seu fracasso.

 Fourierismo na selva paranaense

Nascido em 1795 num vilarejo do Jura, a montanhosa fronteira da França com a Suíça, e formado pela Faculdade de Medicina de Paris em 1825, Jean Maurice Faivre chegou ao Brasil em fins de 1826. No país recém-independente, logo seria nomeado para o Hospital Militar da Corte. Três anos depois estava entre os cinco fundadores da Academia Imperial de Medicina. No final da década de 1840, valeu-se de suas relações na corte, sobretudo da amizade com a Imperatriz Teresa Cristina, de quem foi médico, para financiar, ao menos em parte, uma espécie de falanstério que fundou em 1847 no interior da então Quinta Comarca da Província de São Paulo, hoje Estado do Paraná. Era a Colônia Teresa, nas margens do rio Ivaí, inicialmente composta por 25 famílias que o médico – e agora colonizador – recrutou na França.

 A despeito de servir a alguns objetivos importantes do império, como a ocupação da fronteira oeste, a catequese de índios e estudos sobre a navegabilidade do rio Ivaí com vistas à ligação fluvial com a Província de Mato Grosso, a colônia de Faivre destacou-se pelo regime social e econômico sob o qual foi criada. Seguindo, grosso modo, o ideário fourierista, que conhecera em Paris, ainda como estudante, Faivre imaginou que se refugiando na selva, junto com seus aderentes, desenvolvendo vida livre e igualitária, estaria a salvo das iniquidades – sobretudo morais - que haviam assolado o mundo das cidades.

Na colônia, onde proibiu a escravidão 40 anos antes de sua abolição no Brasil, distribuiu terras gratuitamente aos membros da comunidade, aos quais já havia oferecido dinheiro para pagarem suas dívidas no Jura e se sustentarem nos dois primeiros anos da colônia. As despesas do trabalho e da vida social eram divididas e, igualmente, os lucros. A colônia apresentou certo desenvolvimento: produziu aguardente e rapadura, construiu uma olaria e desenvolveu uma agricultura de subsistência. Mas logo a maioria dos franceses que trouxera o abandonou. O isolamento da colônia e outros fatores apressaram sua decadência. Em 1858 Faivre morreu tragado por febre traiçoeira sem ver realizados seus sonhos.

Para o historiador paranaense Ermelino Agostinho de Leão, presidente da Província entre 1864 e 1875, Faivre visava “estabelecer no sertão ínvio um núcleo de população que, obedecendo a novos princípios sociais e econômicos, conseguisse implantar um regime de franca felicidade. Visava ensaiar uma sociedade despida de ambição monetária, apoiada no princípio da solidariedade humana, reformando os abusos dos centros industrialistas que começavam a imperar”.

Ainda Ermelino de Leão: “Sua doutrina socialista, respeitando os vínculos sociais da família e da religião e praticando o comunismo sem as extremas doutrinas anarquistas que visam o destruir para reconstruir somente sob o ponto de vista econômico, tendia a criar um sodalício igualitário, sem escalas sociais criadas pelos bens de fortuna”.
E mais: “Suprimida a riqueza individual, distribuída a produção coletiva de conformidade com as necessidades de cada indivíduo, nivelados todos, pensava o humanitário médico que a regeneração humana estaria implantada e que, em vez das rudes lutas econômicas, ao serviço de ambições, desenvolvendo-se em uma série de atritos e conflitos, dos quais resultavam vencedores e vencidos, imperaria a solidariedade, o amor, o altruísmo a bafejar de venturas no núcleo social que praticasse a sonhada reforma. Para ele, o dinheiro era o inimigo capital da felicidade humana”.

A trajetória de 63 anos da vida de Jean Maurice Faivre mostra-se como emblemática de algo que marcou o século XIX, ou seja, a busca por alternativas civilizatórias para a sociedade que superassem as iniquidades do capitalismo. O ponto alto dessa busca deu-se com a formulação do marxismo. Mas até que se chegasse a ele, sensíveis corações e mentes repletos de indignação e generosidade moveram-se, muitos obsessivamente, em direção, sobretudo, da justiça social. Foi um século de problemas e soluções para a sociedade humana, que o bom Faivre, a seu modo e nas fronteiras das suas limitações, procurou viver em plenitude. Convenhamos, bom tema para um romance-histórico.











 

 

sábado, 26 de janeiro de 2013

Paulo Wright não está em Cuba

Luiz Manfredini

Esquadrinhando meus livros, dia desses, me deparei com um volume de não mais que 130 páginas, já um pouco empoeirado (a edição é de 1993), sob o título “O coronel tem um segredo” e o subtítulo “Paulo Wright não está em Cuba”. Folheei o livro, detendo-me aqui e ali no relato sensível de Delora Jan Wright, filha do reverendo Jaime Wright (que trabalhou com dom Paulo Evaristo Arns no projeto “Brasil: nunca mais”) e sobrinha de Paulo. Naveguei por trechos do livro e pelos escaninhos da minha memória, buscando mais uma vez capturar das névoas do passado a figura desse revolucionário destemido, sensível e fervoroso que em julho próximo completaria 80 anos. Em algum dia de setembro de 40 anos atrás ele foi preso e trucidado pela ditadura.

Filho de missionários norte-americanos da Igreja Presbiteriana que se estabeleceram no Brasil em 1923, Paulo nasceu em Herval, Oeste catarinense, em julho de 1933. Desde cedo foi dedicado militante cristão em favor das causas sociais. Aos 23 anos, depois de formar-se em sociologia e política pelo “College of the Ozarks”, em Arkansas (EUA), tirou sua carteira de trabalho como servente em São Paulo. Desejava, como registrou Delora Wright, “viver a vida, os sacrifícios, as alegrias e as dores de um trabalhador”. Mais tarde, já casado em Joaçaba (SC), empregou-se como torneiro mecânico e ajudou a fundar o sindicato local dos metalúrgicos e organizou os trabalhadores da construção civil e da indústria de papel e papelão. Dois anos depois, de volta a São Paulo, empregou-se como operário da Lambretta do Brasil e associou-se ao Sindicato dos Metalúrgicos. Durante o dia trabalhava na fábrica e, à noite, lecionava sociologia no Instituto Metodista. Em 1960 era secretário regional da União Cristã de Estudantes do Brasil. Depois voltou à Joaçaba, onde disputou a Prefeitura.

 Nessa época de grande efervescência política no Brasil – o final do governo JK, o efêmero governo de Jânio Quadros e o início do período João Goulart – Paulo disseminou palestras e conferências, participou de movimentos como o que defendia a revolução cubana e organizou 27 cooperativas de pescadores. Eleito deputado estadual em 1962, no ano seguinte aproximou-se da recém-fundada Ação Popular, organização reformista de origem católica à qual se dedicaria por inteiro nos dez anos seguintes, sua última década de vida.

 A cassação do seu mandato parlamentar pelos militares golpistas, em maio de 1964, lançou Paulo Wright para um breve exílio no México e em Cuba. Breve porque, já em 1965, estava de volta ao Brasil, agora clandestino. O nome Paulo perdia-se nas sombras, dando lugar ao de João, o mais usado por ele – entre outros – na vida subterrânea. Tornou-se dirigente nacional da AP, acompanhou a rota da organização do reformismo à revolução, mas não se incorporou ao PCdoB como fez a maioria dos seus companheiros entre 1972 e 1973. Tornou-se marxista-leninista, certamente sem deixar de ser cristão. Como afirmou o cardeal Arns, no prefácio do livro de Delora, Paulo Wright era “um cristão que teve a coragem de levar suas convicções às últimas consequências”.

 Recentemente o “Vermelho” dedicou um editorial aos que “foram quadros políticos sem igual na esquerda brasileira, homens extraordinários, guerreiros do povo brasileiro”, dedicados “à luta pelo ideal comunista, pela revolução político-social e o socialismo”, e que “deram suas vidas à democracia, às causas patrióticas, aos direitos do povo, à solidariedade internacional”. Paulo Wright foi um desses gigantes da história. Haroldo Lima e Aldo Arantes, que na direção da AP divergiram de Paulo Wright quanto à incorporação da organização ao PCdoB, passando a trilhar caminhos diversos, o homenagearam nas “Palavras finais” de seu livro “História da Ação Popular: da JUC ao PCdoB”: “Manifestamos nosso respeito à memória de Paulo Stuart Wright, combatente sério e dedicado que, preso pela ditadura militar fascista, em setembro de 1973, foi torturado e morto, tendo-se portado com dignidade revolucionária”.

Entre 1968 e 1973, ou seja, entre os meus 18 e 23 anos, mantive vários encontros com Paulo Wright em Curitiba, São Paulo, no interior de Santa Catarina e em Salvador, cobertos sempre pelo manto da clandestinidade. Jovem em busca de exemplos modelares, aprendi a admirar profundamente aquela figura de larga bonomia, paciente para ouvir com atenção a todos, dedicado ao extremo às suas convicções e à luta revolucionária. Nosso último encontro foi no início de setembro de 1973, em São Paulo. Circulamos de carro pela cidade e estacionamos numa ruazinha estreita e arborizada do Morumbi. O povo vibrava no estádio e nós, dentro de um fusca, conversávamos sobre os desafios da revolução brasileira. Ali permanecemos um bom tempo, após o que Paulo se despediu e seguiu pela ruazinha com seu andar cansado. Dias depois embarcaria num trem urbano com destino a Santo André para nunca mais aparecer.

Prestei a Paulo Wright singela homenagem em meu romance “Memória de Neblina”, fazendo-o encontrar-se com dois personagens, Sebastião e Lau, num “aparelho” da clandestinidade, dias após a decretação do Ato Institucional número 5, em dezembro de 1968.

Paulo Wright entrou pela porta dos fundos, maneiroso como sempre, sorridente como sempre, desempenhando o papel de tio do Sebastião, o tio César, de passagem pela cidade. (...) Alto, forte, a cabeleira puxada para trás, em ondas, aqueles bigodões cuja contundência era amenizada pelos olhos azuis que conferiam à sua fisionomia uma aura de bondade quase ingênua.

Passaram a tarde num quartinho do sótão. Conversaram sobre a grave situação do País e as perspectivas revolucionárias.

Paulo Wright, voz de brisa primaveril adestrada no mundo dos segredos, enveredou a conversa para a vida de cada um dos dois, tão jovens e tão dispostos.

Logo em seguida os deixou.

Lau e Sebastião nunca mais o viram.

 Quatro anos depois Paulo Wright foi tragado pela violência que previra e desapareceu no oceano de sombras do regime. Seu nome nunca deixou de frequentar a lista dos desaparecidos, sobre os quais jamais se teve notícia alguma.


sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Lula de volta às ruas


Luiz Manfredini

Lula anunciou sua volta às ruas a partir de fevereiro. "No ano que vem, para alegria de muitos e tristeza de poucos, voltarei a andar por este país”, disse. E acrescentou: “Vou andar pelo Brasil porque temos ainda muita coisa para fazer, temos de ajudar a presidenta Dilma e trabalhar com os setores progressistas da sociedade".

 Oficialmente Lula retornará às suas caravanas da cidadania. Mas sabe-se o que realmente vai fazer. Vai para as ruas, para junto do povo enfrentar a ofensiva política que a direita ensaia no pós Ação Penal 470 e com vistas às eleições de 2014. É o estilo de ex-presidente, já utilizado no final de 2005, quando os demo-tucanos batalharam pelo impeachment no bojo da CPI dos Correios. Inviabilizado o impedimento, a direita decidiu sangrá-lo de modo que chegasse, exangue, para ser derrotado nas eleições de 2006. Nas ruas, com o povo, Lula virou o jogo.

Sem programa e perdendo votos a cada eleição, as oposições não se conformam em testemunhar que o PT de Lula e seus aliados tenham vencido a disputa de 2012 em mais de 80% dos municípios brasileiros e que ele e a presidente Dilma ostentem uma popularidade que beira os 80% (segundo as pesquisas, qualquer um dos dois seria imbatível, em qualquer cenário, se as eleições de 2014 fossem hoje). Então as oposições e seu beligerante aparato midiático, voltam à tática de 2005: colocar Lula sob sua mira, agora tentando, por todos os meios, ligá-lo ao suporto “mensalão”, qualificando-o como corrupto e, assim, iniciando a operação para desconstrui-lo por inteiro. Agora o famigerado Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, anuncia que provavelmente enviará à primeira instância o depoimento de Marcos Valério onde ele diz que recursos do suposto “mensalão” foram utilizados para pagar despesas pessoais de Lula. É isso, a campanha da direita está na rua, ou melhor, nas imagens da TV e nas páginas dos jornais e revistas da grande mídia privada, o que lhe multiplica a repercussão na busca de um consenso social reacionário.

A campanha contra Lula está ligada, obviamente à disputa que se avizinha para 2014 (a presidente Dilma ainda não entrou propriamente no foco do ataque), mas contém um ingrediente para além da luta política concreta. Um ingrediente ideológico, de furioso ódio de classe da casa grande contra um atrevido da senzala que ousou altear-se na política nacional, chegando – pasmem – à Presidência da República. Não é gratuita, portanto, a execração que o complexo midiático-conservador promove contra o ex-presidente, uma campanha carregada de menosprezo, de cruel abominação, que impõe, como solução final, não apenas derrotar Lula politicamente, mas também desmoralizá-lo, humilhá-lo, desqualifica-lo como pessoa e cidadão, como a dizer à sociedade que o trabalhador deve trabalhar, produzir riqueza, mas nunca atrever-se a liderar o País.

Ressalvadas as proporções e circunstâncias históricas, o que as elites conservadores pretendem assemelha-se ao que os portugueses fizeram com Tiradentes, executado e esquartejado por liderar a Inconfidência Mineira, com os pedaços do seu corpo espalhados por onde realizara sua pregação revolucionária. Arrasaram a casa em que morava, jogando sal no terreno para que nada lá germinasse. Sua memória e decendentes foram declarados infames.

Nessa guerra sistemática, cotidiana, a grande mídia privada – o supremo arauto à frente das maquinações direitistas - não se vexa em inventar e manipular fatos, propalar mentiras, montar fotos, espalhar boatos. É a guerra de classe sem fim. Getúlio Vargas e João Goulart foram vítimas de campanhas semelhantes, embora sua condição de grandes proprietários rurais os tenha livrado do ódio de classe que se abate sobre Lula. Foram campanhas sórdidas contra o progressismo daqueles governos, mas sob a mesma capa do moralismo cretino e falseador. A expressão “mar de lama”, com a qual a direita sempre atacou os governos progressistas, foi criação de Carlos Lacerda, em suas histéricas investidas contra Getúlio no início dos anos 1950.

Mas já na crise de 2005 Lula garantiu que não teria o fim que tiveram os dois ex-presidentes – o suicídio de um, a deposição de outro. Lutaria. E lutaria nas ruas, leito por onde a história costumeiramente marca seus espasmos e garimpa suas soluções. É o que anuncia para fevereiro. Não é do seu estilo choramingar dificuldades, abater-se diante delas como, lamentavelmente, procede expressiva parte do seu partido, atada a um certo – e nocivo - fatalismo. Diante da crise, Lula se agiganta. Sabe que a ofensiva midiático-conservadora, a despeito de tê-lo como o centro do alvo, mira também o projeto de esquerda que ele encarna e todos os seus atores (e não apenas o PT, como julgam alguns). Por isso, logo estará nas ruas.


Luiz Manfredini é jornalista e escritor em Curitiba, representa no Paraná a Fundação Maurício Grabois e é autor de “As moças de Minas”, “Memória de Neblina”, “Sonhos, utopias e armas” e “Vidas, veredas: paixão”.
 

 

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Chávez e a nossa América

Redigimos estas notas em meio aos rumores, quase todos pessimistas, sobre a saúde de Hugo Chávez. Muitos, que não conseguem ocultar o regozijo, afirmam que o líder venezuelano agoniza. Outros – e é o caso de Evo Morales, da Bolívia - rezam para que ele sobreviva.

Mauro Santayana, em seu blog

Infelizmente, segundo observações médicas, só um milagre poderá devolver Chávez a Caracas, vivo e apto a retornar ao poder. As indomáveis circunstâncias, que o fizeram soldado, revolucionário e chefe de governo e de Estado em seu país, retiram-se agora de seu destino, dele fazendo um enfermo comum, que vem lutando, com coragem, mas sem armas efetivas, contra o câncer.

Ele, ao ser diagnosticada a enfermidade, observou, sob o riso desdenhoso de alguns, que o câncer estava, em coincidência muito suspeita, atingindo líderes do continente. Citou Lula e Cristina Kirchner e ele mesmo, como exemplos. O fato é que, em nossos dias, é fácil provocar enfermidades fatais em pessoas com saúde, e é também certo que o poder, com sua ansiedade e angústias, vulnera o organismo e favorece o seu acosso.

Chávez, queiram ou não seus opositores, ocupou a História da Venezuela com uma presença só comparável à de seu ícone, Simon Bolívar. Não cabe discutir – e o debate exige tempo e espaço – se as medidas que tomou irão prevalecer no futuro. O seu grande êxito foi o de dar à maioria do povo venezuelano, o seu lado mais sacrificado e oprimido, antes e depois da independência, a consciência de ser, e de pertencer a uma pátria pela qual vale lutar.

O coronel é um mestiço andino, embora tenha nascido ao sopé de um dos segmentos mais imponentes da Cordilheira, o de Mérida, mas em terras planas. Sua forma de ver o mundo está na contradição dialética entre os mitos pré-colombianos e o pensamento ocidental. Em homens de sua origem e formação, prevalece, em certos momentos, a força instintiva dos autóctones, em outros, o racionalismo europeu.

Nesse jogo mental ele construiu o seu discurso às massas, muito superior ao de outros líderes continentais, pela simplicidade e pelo uso de imagens oferecidas pelo cotidiano.

O destino do socialismo bolivariano está vinculado, neste momento, à sobrevivência do discurso de Chávez. Como em todas as experiências políticas do passado, é difícil que o sistema, como ele o construía, se complete. Mas é certo de que os trabalhadores da cidade e dos campos de seu país não aceitarão voltar à submissão, dócil, aos oligarcas que têm dominado o país, com pequenos intervalos de governos honrados e efêmeros – como o do grande romancista Romulo Gallegos, que durou apenas nove meses, em 1948.

Chávez já é um dos grandes homens da América.

Última chance para derrubar Dilma

A oposição sabe que o ano-chave das eleições não é 2014, é 2013. Ou ela começa já a derrubar a popularidade de Dilma, incentiva candidaturas competitivas e estigmatiza de vez o partido da presidenta, ou pode dar adeus não só às suas remotas chances de vitória, mas de que haja segundo turno em 2014.

Antonio Lassance
 
A oposição sabe que o ano-chave das eleições não é 2014, é 2013. Ou ela começa já a derrubar a popularidade de Dilma, incentiva candidaturas competitivas e estigmatiza de vez o partido da presidenta, ou pode dar adeus não só às suas remotas chances de vitória, mas de que haja segundo turno em 2014. O “timing” para fazer isso é 2013, ou será tarde demais para conseguir tirar a vantagem que hoje tem a presidenta contra qualquer adversário.

Ao contrário de campanhas anteriores, os tucanos já definiram seu candidato com bastante antecedência. A antecipação ocorreu porque a tarefa da oposição é ingrata. A popularidade de Dilma anda na estratosfera (73%) e resistiu aos escândalos direcionados contra seu governo, ao julgamento da Ação Penal 470 e à desaceleração da economia. A presidenta e o PT não só atravessaram tudo isso como conseguiram ampliar o número de prefeituras e derrotar o PSDB na cidade com o maior eleitorado do país. Uma dificuldade extra para a política em 2014 será o clima de copa do mundo de futebol, mais intenso e que se estenderá por mais tempo no Brasil.

Na batalha para garantir que pelo menos haja segundo turno, os que fazem oposição ao governo Dilma sabem que não podem confiar só no PSDB. Torcem por um maior número de candidatos com pelo menos 10% de intenções de voto cada. Faz parte do jogo trazer Marina Silva de volta à cena, falando de meio-ambiente; dar voz ao Psol para falar de corrupção; estimular Eduardo Campos – que já disse que não é candidato - a se tornar candidato. Nessa divisão do trabalho, os tucanos centram seu foco na economia, ou melhor dizendo, no tema das finanças (públicas e privadas).

Na nova estratégia oposicionista, o tempo é a variável fundamental. A estigmatização dos adversários e a editorialização da política já são armas corriqueiras. Os alvos também continuam, em grande medida, os mesmos. Incluem os clichês da tradicional espiral de pessimismo: "a inflação está alta demais", "os gastos públicos fugiram do controle", "o país vai crescer menos que o Haiti", "a saúde está pela hora da morte", "a educação só piora".

Os estigmas mais fortes virão dos desdobramentos do mensalão. A oposição ambiciona as imagens de petistas indo para a carceragem, se possível, algemados; melhor ainda se forem pegos de pijama e seguirem para a prisão em camburões, filmados pelos helicópteros das redes de TV.

Os novos alvos ficam por conta da batalha pela redução das tarifas de energia, confrontada com o fantasma do apagão, e da gestão da prefeitura de Haddad, que poderá ser alvo da mesma tentativa de erundinização que se viu na campanha de 1989 contra Lula, quando uma administração boa e séria foi transformada em um péssimo exemplo pelos adversários.

Está certíssimo o ministro Gilberto Carvalho, que disse que “2013 vem aí e vem muito bravo”. A questão é saber: diante dos ataques, o que farão a presidente, seu governo, Lula e o PT?

Uma grande expectativa está sendo depositada em uma presença pública mais intensa de Lula, com suas caravanas, seu contato com o povo, sua língua ferina contra os adversários, seu improviso, suas metáforas. Esse estilo direto e mambembe de fazer política sempre ajudou o PT a inverter o jogo em momentos difíceis.

Mas será que isso basta? Lula será fundamental para defender o PT e a si próprio dos duros ataques que vem sofrendo. Também pode fazer, melhor do que ninguém, a defesa de seu legado. Em 2013, completamos 10 anos do início de muitas mudanças que agora fazem parte da paisagem socioeconômica do país. Mas há toda uma nova geração de brasileiros que já não se recorda do que era este país antes de Lula. Não sabe o que era a educação sem Fundeb, sem Pró-Uni, sem Cefet’s, sem as universidades que foram criadas ou ampliadas. Não sabe o que era a Saúde sem a Política Nacional de Urgência e Emergência - da qual fazem parte o SAMU e as Unidades de Pronto Atendimento - e sem “Brasil Sorridente”.

Tem gente que não se lembra o que era a infraestrutura do país antes do PAC, nem da época em que engenheiros começavam a aparecer nas esquinas vendendo cachorro-quente. Muita gente não tem ideia do que era a vida dos mais pobres com a taxa de desemprego acima de dois dígitos, sem o Bolsa Família, sem o “Minha Casa, Minha Vida”, sem o “Luz para todos”. Antes da criação das contas populares, que permitiram a bancarização de milhões de brasileiros, muitos tinham vergonha de entrar em uma agência bancária e só conseguiam crédito recorrendo à agiotagem. Neste sentido, Lula pode ajudar muito a refrescar a memória do país.

Mas, e Dilma? Estamos falando de seu governo, e não só do governo Lula. É da presidenta a responsabilidade primordial de dizer o que é e o que faz seu governo. Seria bom que fizesse isso mudando ou no mínimo variando mais seu padrão de comunicação, incluindo entrevistas a blogueiros, a rádios e veículo do interior, sindicais e comunitários.

Se quiser fazer frente a seus adversários e ao tamanho dos desafios colocados, Dilma vai ter que falar mais, que viajar mais. Vai precisar explicar mais o que está acontecendo, o que está fazendo e o que está em jogo para o futuro do país. Terá que se rodear menos de ministros e celebridades, e mais do povo das ruas. Afinal, este ano de 2013 começou com altas temperaturas e com cara de primeiro turno.

Antonio Lassance é cientista político e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).