terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O presente e o futuro do comunismo

Domenico Losurdo [*]

Aproxima-se o centenário da grande revolução de Outubro. Como acontece muitas vezes com revoluções, aquela principiada há aproximadamente um século seguiu um percurso completamente imprevisto. Estamos em todo caso na presença de um gigantesco processo de emancipação que modificou a face da Terra e que está bem longe de ter chegado à sua conclusão.

Continuo a julgar correta a visão da “Ideologia Alemã”, segundo a qual o comunismo é sobretudo “o movimento real que abole o atual estado de coisas”. Observemos as mutações que se verificaram no mundo a partir da primeira revolução que se reclamou de Marx e Engels. Antes de Outubro de 1917 não havia democracia, mesmo no Ocidente: era o reino das três grandes discriminações para com as mulheres, as classes subalternas, os povos coloniais e de origem colonial.

Com Fevereiro e Outubro de 1917, a Rússia revolucionária reconheceu às mulheres direitos políticos e ativos e passivos. A República de Weimar (nascida da revolução que explodiu na Alemanha um ano após a revolução de Outubro) tomou o mesmo caminho, seguido pelos Estados Unidos. É certo que na Itália, Alemanha, Áustria e Inglaterra o sufrágio universal (masculino) estava mais ou menos afirmado, mas ficava neutralizado por uma Câmara alta que permanecia o apanágio da nobreza e da grande burguesia.

A discriminação racial apresentava-se sob uma forma dupla: considerados como indignos de se constituírem como Estado nacional independente, os povos coloniais eram submetidos à dominação absoluta das grandes potências.

Num país como os EUA, os afro-americanos eram excluídos dos direitos políticos (e por vezes mesmo dos direitos cívicos). A ultrapassagem da discriminação racial sob estes dois aspectos não pode ser pensada sem o capítulo da história aberto por Outubro de 1917.

O papel desempenhado pelos Partidos Comunistas nas revoluções anticoloniais é notável. E no que se refere aos Estados Unidos? Em Dezembro de 1952, o ministro da Justiça enviava ao Tribunal Supremo, ocupado a discutir a questão da integração nas escolas públicas, uma carta eloquente: “A discriminação racial leva a água ao moinho da propaganda comunista”. O desafio comunista desempenhou um papel essencial igualmente na ultrapassagem do regime da supremacia branca.

Os direitos sociais e econômicos fazem parte da democracia tal como a esquerda a entende. E foi este patriarca do neoliberalismo, Hayek, que denunciou o fato de que a teorização e a presença no Ocidente destes direitos remetiam à influência, por ele considerada nefasta, da “revolução marxista russa”.

Compreende-se portanto que, à atenuação do desafio comunista, corresponda no Ocidente uma restauração. Não se trata só do desmantelamento do Estado social. O peso da riqueza é tão forte que, mesmo nas colunas do New York Times, podem-se ler denúncias considerando que o regime em vigor nos Estados Unidos assemelha-se mais a uma “plutocracia” do que à democracia.

A contrarrevolução é evidente igualmente nos casos do colonialismo, reavaliada pelo teórico da “sociedade aberta”, Karl Popper: “Nós libertamos estes Estados (as antigas colônias) muito apressadamente e de modo demasiado simplista”.

Vejamos, em sentido contrário, o que se passa num país continente que ficou sob a direcção do Partido Comunista. Pondo fim à catástrofe provocada pelas guerras do ópio e a agressão colonialista, a China devolveu a centenas de milhões de pessoas o primeiro dos direitos do homem, a saber, o direito à vida.

O Estado social começa aqui a dar os seus primeiros passos, ao passo que doravante ele é renegado no Ocidente, inclusive no plano teórico.

Mas isto não é tudo: ao reduzir rapidamente seu atraso tecnológico em relação aos países capitalistas mais avançados, a China põe fim à “era de Colombo”, que havia começado com a descoberta-conquista da América e que viu o Ocidente sujeitar o planeta inteiro.

Veem-se criar as condições para frustrar as tentações colonialistas e democratizar as relações internacionais. O declínio da doutrina Monroe, à qual a revolução cubana infligiu pela primeira vez um golpe severo, está lá para confirmar.

Como acontece muitas vezes com revoluções, aquela principiada há aproximadamente um século seguiu um percurso completamente imprevisto. Estamos em todo caso na presença de um gigantesco processo de emancipação que está bem longe de ter chegado à sua conclusão.

[*] Filósofo, professor da Universidade de Urbino, Itália. Texto publicado origianalmente no sítio Resistir.
 

Os serviços de Marina Silva


Luiz Manfredini

Nos anos 90, a direita dispunha de um programa para o Brasil: o programa neoliberal. Beneficiária da atmosfera regressiva criada pela queda do Muro de Berlin e dissolução da União Soviética, no curso de uma ampla crise do socialismo e de um notável avanço do capital, ela sensibilizou o eleitorado brasileiro com suas propostas aparentemente inovadoras de privatizações, Estado mínimo e outros quejandos. E indicou para representá-la um egresso da esquerda, o então senador Fernando Henrique Cardoso, que cumpriu dois mandatos presidenciais. Digamos assim: a direita estava com tudo.

Mas o modelo neoliberal sofreu reveses decisivos no Brasil e no mundo. A partir de 2003 o Governo Lula inaugurou um novo modelo que, a despeito de equívocos e limitações, confrontou-se com o receituário neoliberal, vitaminou o crescimento econômico com justiça social e soberania nacional e, assim, ganhou a alma da maioria dos brasileiros. A Presidente Dilma se elegeu no bojo desse movimento para a esquerda. E a direita ficou sem programa e, portanto, órfã de propostas para o Brasil. Nos últimos anos, amparada em seu vasto poderio midiático, restou-lhe atacar o governo a partir do velho cantochão do moralismo e de pontos isolados que estão longe de se constituírem uma alternativa à plataforma da esquerda.

Mas isto não basta para a direita vislumbrar alguma perspectiva, que não a derrota, nas eleições de 201. Assim, procura construir ou ajudar a construir cenários adicionais que, mesmo indiretamente, a favoreçam. Um desses cenários é o da fragmentação do quadro partidário e de alianças eleitorais, na esperança de evitar a vitória da Presidente Dilma já no primeiro turno, como apontam as pesquisas. Daí a grande mídia privada e mesmo próceres da direita saudarem o lançamento, no dia 16 de fevereiro, em Brasília, do partido da ex-senadora Marina Silva, a tal Rede Sustentabilidade, ou simplesmente Rede.

Marina não dispõe mais dos 20 milhões de votos que auferiu em 2010 em circunstâncias políticas irrepetíveis. Mas seu capital eleitoral – ali pelos 9%, segundo estimam pesquisas atuais - ainda é respeitável. A direita conta com eles para tentar impedir a vitória de Dilma já no primeiro turno. E se esforça para isso, inclusive oferecendo quadros ao novo partido. O deputado federal paulista Walter Feldman, por exemplo, um tucano histórico e sempre muito bem votado, é apontado como um dos fundadores da agremiação de Marina. Claro que não será fácil amealhar, até outubro, as 500 mil adesões necessárias para legalizar o partido, mas a direita certamente vai ajudar.

Mas o partido da ex-senadora pelo Acre, além dos serviços que prestará à direita, ainda que indiretamente, contém singularidades que não passaram desapercebidas. A primeira, nas palavras da própria Marina: "Estamos na época ao paradoxo, nem situação, nem oposição a Dilma. Precisamos de posição”. Nem oposição, nem situação, mas posição? O que é isso? Parece tiradinha de publicitário. E mais: “Nem direita, nem esquerda. Estamos à frente". Mas onde está o partido, em que galáxia? Isso me cheira à senha para o oportunismo, pois numa agremiação que assim se define, cabe todo mundo. Também a afirmação de Marina de que o Rede vai romper com “a lógica de partidos a serviços de pessoas” soa como embuste. Não está a serviço de pessoas, mas só ela é quem aparece.

Não vai o partido de Marina aceitar contribuições de empresas de cigarro, armas, agrotóxicas e bebidas alcoólicas. Mas nada fala a respeito das doações de bancos e empreiteiras. Uns, como o deputado Walter Feldman, falam que a agremiação só aceitará dirigentes e candidatos com ficha limpa, regra que não vale para filiados em geral. Outros, como um dos fundadores, João Paulo Capobianco, asseguram que a legenda vai "coibir a entrada de ficha suja". Ingressa ficha suja ou não? A confusão está precocemente formada, o que não soa estranho a um partido que não possui carta programática, no qual metade dos filiados poderá ter a opinião que desejar, à margem das orientações partidárias.

Tais orientações foram coletadas entre os primeiros aderentes. No evento de lançamento, em Brasília, os participantes – alguns deles se denominam “sonháticos” - relataram sonhos ao microfone ou por escrito. Como notou, em artigo recente, o biólogo e professor Pedro Luiz Teixeira de Camargo, “as ideias eram as mais divergentes possíveis, passando pelo mote ‘mais Joaquim Barbosa, por favor’, até a palavra mágica "amor". Para ele, “a partir do momento em que metade dos filiados não precisa seguir um programa partidário, busca-se o enfraquecimento dos partidos políticos”. E aí está um ponto crucial nessa iniciativa, a primeira que busca desclassificar a instituição partido como instrumento primordial da política. Diz Marina: . "Estamos num processo de desconstrução de que o partido tem monopólio da política, queremos quebrar isso”. É a ação declarada contra os partidos, a tentativa de despolitização da sociedade.

Em seu oportuno artigo, Pedro Luiz Teixeira de Camargo conclui:

“É fundamental mostrar a toda a sociedade a verdadeira faceta de Marina Silva e de sua Rede: servir de legenda para deputados insatisfeitos em seus partidos, garantir um partido para a realização pessoal da ex-senadora e, principalmente: servir de sublegenda para a direita neoliberal. Desgastada devido aos bons governos de Lula e Dilma, a direita tradicional precisa se repaginar, e nada melhor que usar uma ex-militante de esquerda, ainda mais se puderem pintar o tucano de verde, que pode deixar de ser a cor da esperança para passar a ser a cor da preocupação”.

Gelatinoso como é, o partido da ex-senadora mereceu definição antológica do jornalista Cláudio Gonzalez: “Não é um partido, é uma ONG que receberá dinheiro do fundo partidário”. Ou, como afirmou o impagável José Simão, dia desses: a Rede de Marina “é o PSD que não come carne”.











 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Charles Fourier no Brasil

Luiz Manfredini

Há dois meses me dedico – sempre que a áspera luta pela sobrevivência me permite – a um novo romance, desta vez sobre o médico francês Jean Maurice Faivre, que aportou no Brasil em fins de 1826 e, entre 1847 e 1858, quando morreu, tentou criar na selva paranaense uma colônia influenciada pelo socialismo utópico do também francês Charles Fourier. Não foi a única tentativa de trazer ao Brasil um projeto fourierista. Seis anos antes, em 1841, outro francês e igualmente médico, Benoit Jules Mure (introdutor da homeopatia no Brasil), criou a Colônia Industrial do Saí – também conhecida como o Falanstério do Saí – nas margens da baía de Babitonga, no norte catarinense.

Foram as duas únicas iniciativas sob influência fourierista que se tem notícia no Brasil. A Colônia Cecília, instalada em Palmeira, no Paraná, nos anos 1890, pelo italiano Giovani Rossi, estava mais ligada ao anarquismo. Todas elas faliram enquanto projetos utópicos, da mesma forma que fracassaram as mais de 70 colônias desse tipo implantadas nos Estados Unidos ao longo do século XIX.

 A utopia socialista daqueles precursores (com destaque para os franceses Saint-Simon e Charles Fourier e o inglês Robert Owen) que, logo após a revolução francesa, se desencantaram com os efeitos deletérios do capitalismo liberal sobre as massas de trabalhadores explorados e empobrecidos, era generosa e, de certo modo, visionária. Buscava uma interpretação totalizante do mundo – e, por decorrência, um projeto societário - capaz de livrar a humanidade das iniquidades que a pervertiam.

Fourier abominava o comércio, segundo ele fonte primordial da mesquinhez da civilização, e imaginava a solução dos problemas econômicos e sociais como resultado da harmonização das 12 paixões que, a seu ver, movem o ser humano. Paixões sensoriais, afetivas, paixões pela ordem e pela harmonia e também pela variação e pela mudança (a paixão borboleteante). Tal harmonização se daria no falanstério, unidade isolada do contágio da civilização, onde viveriam 1.600 pessoas sob um regime de propriedade privada limitada pela repartição igualitária dos benefícios da produção realizada coletivamente. Fourier imaginava que, a partir desses falanstérios, seria possível modificar radicalmente as estruturas básicas da vida humana, instalando-se a “sociedade harmoniosa”.

 Mas se cabiam bem na mente privilegiada dos seus criadores, tais doutrinas que, mais tarde, Marx e Engels viriam a definir como “socialismo utópico”, pouco combinavam com a realidade, pois desligadas das circunstâncias socioeconômicas e histórico-culturais das sociedades em que pretenderam se implantar. Daí a razão do seu fracasso.

 Fourierismo na selva paranaense

Nascido em 1795 num vilarejo do Jura, a montanhosa fronteira da França com a Suíça, e formado pela Faculdade de Medicina de Paris em 1825, Jean Maurice Faivre chegou ao Brasil em fins de 1826. No país recém-independente, logo seria nomeado para o Hospital Militar da Corte. Três anos depois estava entre os cinco fundadores da Academia Imperial de Medicina. No final da década de 1840, valeu-se de suas relações na corte, sobretudo da amizade com a Imperatriz Teresa Cristina, de quem foi médico, para financiar, ao menos em parte, uma espécie de falanstério que fundou em 1847 no interior da então Quinta Comarca da Província de São Paulo, hoje Estado do Paraná. Era a Colônia Teresa, nas margens do rio Ivaí, inicialmente composta por 25 famílias que o médico – e agora colonizador – recrutou na França.

 A despeito de servir a alguns objetivos importantes do império, como a ocupação da fronteira oeste, a catequese de índios e estudos sobre a navegabilidade do rio Ivaí com vistas à ligação fluvial com a Província de Mato Grosso, a colônia de Faivre destacou-se pelo regime social e econômico sob o qual foi criada. Seguindo, grosso modo, o ideário fourierista, que conhecera em Paris, ainda como estudante, Faivre imaginou que se refugiando na selva, junto com seus aderentes, desenvolvendo vida livre e igualitária, estaria a salvo das iniquidades – sobretudo morais - que haviam assolado o mundo das cidades.

Na colônia, onde proibiu a escravidão 40 anos antes de sua abolição no Brasil, distribuiu terras gratuitamente aos membros da comunidade, aos quais já havia oferecido dinheiro para pagarem suas dívidas no Jura e se sustentarem nos dois primeiros anos da colônia. As despesas do trabalho e da vida social eram divididas e, igualmente, os lucros. A colônia apresentou certo desenvolvimento: produziu aguardente e rapadura, construiu uma olaria e desenvolveu uma agricultura de subsistência. Mas logo a maioria dos franceses que trouxera o abandonou. O isolamento da colônia e outros fatores apressaram sua decadência. Em 1858 Faivre morreu tragado por febre traiçoeira sem ver realizados seus sonhos.

Para o historiador paranaense Ermelino Agostinho de Leão, presidente da Província entre 1864 e 1875, Faivre visava “estabelecer no sertão ínvio um núcleo de população que, obedecendo a novos princípios sociais e econômicos, conseguisse implantar um regime de franca felicidade. Visava ensaiar uma sociedade despida de ambição monetária, apoiada no princípio da solidariedade humana, reformando os abusos dos centros industrialistas que começavam a imperar”.

Ainda Ermelino de Leão: “Sua doutrina socialista, respeitando os vínculos sociais da família e da religião e praticando o comunismo sem as extremas doutrinas anarquistas que visam o destruir para reconstruir somente sob o ponto de vista econômico, tendia a criar um sodalício igualitário, sem escalas sociais criadas pelos bens de fortuna”.
E mais: “Suprimida a riqueza individual, distribuída a produção coletiva de conformidade com as necessidades de cada indivíduo, nivelados todos, pensava o humanitário médico que a regeneração humana estaria implantada e que, em vez das rudes lutas econômicas, ao serviço de ambições, desenvolvendo-se em uma série de atritos e conflitos, dos quais resultavam vencedores e vencidos, imperaria a solidariedade, o amor, o altruísmo a bafejar de venturas no núcleo social que praticasse a sonhada reforma. Para ele, o dinheiro era o inimigo capital da felicidade humana”.

A trajetória de 63 anos da vida de Jean Maurice Faivre mostra-se como emblemática de algo que marcou o século XIX, ou seja, a busca por alternativas civilizatórias para a sociedade que superassem as iniquidades do capitalismo. O ponto alto dessa busca deu-se com a formulação do marxismo. Mas até que se chegasse a ele, sensíveis corações e mentes repletos de indignação e generosidade moveram-se, muitos obsessivamente, em direção, sobretudo, da justiça social. Foi um século de problemas e soluções para a sociedade humana, que o bom Faivre, a seu modo e nas fronteiras das suas limitações, procurou viver em plenitude. Convenhamos, bom tema para um romance-histórico.